A filósofa estadunidense Judith Butler afirma que um dos critérios éticos e políticos decisivos para se avaliar o mundo contemporâneo, o mundo criado pelo capitalismo neoliberal e financeiro, é a pergunta sobre quais vidas são consideradas propriamente humanas, quais vidas têm o direito de avocar para si os direitos humanos, quais vidas importam e quais vidas não importam, quais vidas são matáveis e quais vidas devem merecer a proteção do direito, do Estado, da governança global e dos governos nacionais.
Creio que vivemos essa semana uma série de acontecimentos que exemplificam, à exaustão que, efetivamente, vivemos em um mundo em que nem todas as carnes e corpos que possuem a forma humana são tratados da mesma maneira, merecem a proteção do direito, são considerados propriamente sujeitos de direitos. O mais chocante é verificar que aqueles que não importam são invisíveis, é como se não existissem, dada a forma como a mídia global silencia, omite, os trata como se suas vidas não merecessem a menor cobertura. Suas vidas também não são importantes para os meios de comunicação que, no máximo, os tratam como parte de estatísticas, de dados numéricos, sem que venham a ganhar a dignidade de ter um rosto, um nome, uma filiação, uma memória, uma história.
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O caso mais emblemático foi o do naufrágio de um barco transportando cerca de 750 imigrantes na costa do litoral da Grécia, que foi completamente eclipsado pela busca cinematográfica do paradeiro dos cinco tripulantes milionários, que pagaram cerca de 1, 2 milhão de reais para se aventurarem a bordo de um submersível, numa viagem para ver os destroços do Titanic, que se encontram numa profundidade de mais de 3 mil e 800 metros no fundo do oceano. Um naufrágio que causou, até agora, cerca de 80 mortes, inclusive de algumas das 100 crianças que se encontravam a bordo, não causou nenhuma comoção global, não mobilizou a quantidade de recursos e dinheiro como os que foram usados e gastos na tentativa de resgate dos cinco milionários. Enquanto centena de corpos de migrantes continuam desaparecidos, com apenas uma centena deles tendo sido resgatados pela Guarda Costeira da Grécia, que não recebeu nenhuma ajuda internacional significativa, atuando com recursos muito mais limitados, em plena costa europeia, a França preferiu deslocar seu robô de buscas submarinas para tentar encontrar a tripulação que resolveu viver uma aventura milionária, colaborando com as Guardas Costeiras dos Estados Unidos e do Canadá.
Enquanto as centenas de corpos e rostos dos imigrantes provenientes de países do Oriente Médio, fugindo de guerras, de perseguições políticas, religiosas e morais, mas, principalmente, fugindo da pobreza absoluta, de vidas completamente destruídas, muitas vezes pelas guerras fomentadas pelas potências ocidentais, ficavam no mais absoluto anonimato, não merecendo mais do que alguns segundos de referência em noticiários internacionais, reportagens de canto de páginas nos jornais, para onde olhássemos, nesses últimos dias, íamos encarar os rostos dos cinco aventureiros que, de tão abastados, não sabendo com que gastar suas fortunas - já que ajudarem populações como essas que morrem em travessias desesperadas em busca do sonho europeu, não entra em cogitação – resolveram se tornar pop star, sem saber que conseguiriam da pior maneira.
Mas a cobertura dada pela mídia nacional a mais uma viagem internacional do presidente Lula e, ao mesmo tempo, as falas contundentes do presidente, em entrevistas coletivas a imprensa e em seus discursos proferidos no evento “Power Our Planet” e na Cúpula por um Novo Pacto Financeiro Global, explicitaram quais vidas importam para a nossa mídia e para a maioria dos dirigentes políticos globais e quais vidas não importam, quais vidas são invisíveis, quais vidas são deixadas de lado, condenadas a morte lenta da miséria, da injustiça, da desigualdade. Ainda quando da entrevista coletiva dada em Roma, após a visita ao Papa Francisco e as autoridades italianas, Lula voltou a se referir ao silêncio covarde da mídia internacional diante do caso do jornalista Julian Assange. Sempre tão disposta a defender a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, os grandes meios de comunicação global assistem calados ao martírio de um jornalista que não fez mais do que cumprir sua obrigação de informar.
Ele que teve a coragem de denunciar os crimes de espionagem ilegal feito pelos órgãos de inteligência americanos, em vários países, inclusive no Brasil e an Alemanha, numa inversão total de valores passou a ser o criminoso. Nem mesmo a empresa de comunicação, a Wikileaks, que faturou milhões de dólares e que ficou conhecida no mundo inteiro graças a suas reportagens faz uma campanha em sua defesa. Lula voltou a cobrar dos jornalistas, sempre tão dispostos e corajosos quando se trata de denunciar o príncipe da Arábia Saudita, Muhammad bin Salman, como responsável pela morte do jornalista saudita Jamal Khashoggi – de quem o presidente brasileiro sabiamente deu um jeito de se desvencilhar em Paris, justamente por causa da esperada repercussão negativa e sensacionalista na mídia brasileira – uma posição da imprensa internacional diante da prisão e da extradição de Assange para os Estados Unidos, o que significará sua prisão perpétua e sua morte. Parece que na hora que se denuncia os crimes das superpotências dadas vidas estão condenadas a não mais ter importância.
Mais uma vez Lula questionou a cobertura da mídia internacional que se engajou na guerra da Ucrânia e não dá espaço para a discussão da paz, como se as vidas dos ucranianos importassem, mas as vidas dos milhares de jovens russos levados a morte pela irresponsabilidade e autoritarismo de um ditador de plantão não importassem. O jornal francês Liberation, em reportagem de capa, disse que Lula é uma decepção e o apodou de inimigo do Ocidente, pois segundo a lógica do jornal Lula deveria meter o Brasil numa guerra, com a qual nada tem que ver, tomar partido contra a Rússia, quando o Brasil já se posicionou em todos fóruns internacionais contra a agressão russa, mas nem por isso, para demonstrar ser amiguinho dos ocidentais - que não titubearam em financiar e dar apoio jurídico e de inteligência a uma operação judicial que o prendeu, que patrocinou o golpe de 2016 e que queria destruir politicamente o seu partido -, deve se envolver num conflito em que quer atuar como força equidistante e que participe de negociações para a paz.
Lula lembrou aos líderes mundiais, muito preocupados agora com o meio ambiente, que era ensurdecedor o silêncio sobre a questão da desigualdade social, de classe, de gênero, de raça, que as vidas dos pobres do mundo inteiro parecem não ter importância. Parecia que naquela cúpula a vida de uma árvore valia mais do que a vida de 900 milhões de seres humanos que todo dia vão dormir com fome, a vida de um panda parece valer mais do que a vida de milhares de haitianos, que vivem num país que parece ter sido esquecido pelo mundo.
Falando ao lado do presidente francês, Lula teve a coragem de lembrar do abandono em que se encontra a ex-colônia francesa, entregue a gangues e máfias, nunca perdoada pelos franceses por ter sido a primeira colônia a se rebelar e fazer sua independência, pelas mãos de negros e mulatos, que mataram todos os brancos da ilha, vidas que importam e, por isso, os haitianos são vidas que não possuem a menor importância até hoje. Como não tem importância a vida de milhões de africanos que vegetam na miséria, dos venezuelanos e cubanos, penalizados, duplamente, por governos ditatoriais e por embargos econômicos criminosos dos países ricos, a vida dos argentinos, impossibilitada por um empréstimo irresponsável e impagável dado ao país pelo FMI. Lula saiu pondo o dedo em todas essas feridas e, no entanto, a mídia local, sempre colonizada, adotando sempre o ponto de vista do colonizador, do dito centro do mundo, preferiu repercutir a contrariedade da mídia francesa ou norte-americana com as posições do presidente.
Para essa gente, na verdade, é sempre um incômodo ter na presidência do país uma vida que escapou da desimportância, a vida de um Silva, migrante, retirante nordestino, pobre, sem diploma, sem dedo, mestiço, operário, que se tornou inegavelmente um dos líderes mais importantes do planeta. A nossa grande mídia, cada vez mais sem importância jornalística, não consegue engolir que uma vida que nasceu para ser desimportante tenha se tornado um pop star, mesmo não tendo milhões para gastar numa aventura submarina. O sapo barbudo continua não entrando pela goela de gente que se sente muito importante, mas não passam de repetidores amestrados das ideias que vem dos nossos colonizadores.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.