Tempos teratológicos ou quando os monstros saem das catacumbas

Teratológico, organismo malformado, com deformações, monstruoso. Teratologia, especialidade médica que se dedica ao estudo das anomalias e malformações ligadas a uma perturbação do desenvolvimento embrionário ou fetal. No entanto o adjetivo teratológico é utilizado em outros contextos, em outras áreas do conhecimento que não a medicina, onde o termo adquire outros significados. No campo do direito podemos encontrar as expressões “argumentos teratológicos” e “decisões teratológicas” para se referirem a argumentos completamente desconformes com a letra da lei, a argumentos absurdos, que não obedecem o princípio da razoabilidade, que não estão conforme a lógica, que se mostram exóticos, estranhos, bizarros, curiosos, foram do comum, em desobediências as normas. Uma decisão teratológica seria aquela que estaria fora do limite do razoável, uma decisão incompreensível, desconforme com o que está consagrado na lei ou na jurisdição, uma decisão anormal, extravagante, decisão eivada de erros de procedimento e de julgamento, qualquer decisão precipitada, tomada sem o devido cuidado, que não avalia suas consequências no mundo real, que gera consequências anódinas ou fora do esperado.

O teratológico envolve, portanto, sempre, uma anomalia quanto a forma, envolve sempre a desobediência a formalidades, a desordens no âmbito da forma, o rompimento com aquilo que se considera a forma normal de algo ser ou aparecer, daí sua sinonímia com a ideia de monstruosidade. O teratológico é o monstruoso, o completamente deformado, aquilo ou aquele que aparece ou se apresenta completamente desconforme com o que se espera ou com o que se define como normal, correto, certo.

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Vou defender nessa coluna que vivemos tempos teratológicos, ou seja, que nosso tempo está marcado pelo acontecimento de eventos que beiram a monstruosidade, pelo surgimento de personagens tão fora do comum, tão bizarros, tão anormais, que se aproximam do que nomeamos de monstros, embora, nesse caso nada tenha a ver, na maioria dos casos, com monstruosidades biológicas ou físicas, mas sim com monstruosidades morais, comportamentais, éticas. Elencarei uma série de eventos e me referirei a um grupo de personagens que, em algum aspecto, estão tão desconforme do que se espera, são tão bizarros, são tão surpreendentemente fora do comum que, muitos deles, levam a que questionemos a sanidade mental dos participantes, o que na verdade é tentar individualizar a responsabilidade por comportamentos que são socialmente produzidos.

Nosso tempo é teratológico porque a ordem social em que vivemos é monstruosa e não deixa de produzir seus filhos deformados subjetivamente.

O bolsonarismo e a extrema-direita não param de produzir eventos e comportamentos teratológicos, de dar origem a personagens bizarros que, muitas vezes, servem para conferir um verniz quase risível a um projeto de destruição, a um projeto eivado de desejo de morte, um projeto que assume as dimensões mais perversas da sociedade brasileira, como o racismo, a misoginia, a homofobia, o preconceito de classe, e da própria ordem burguesa e capitalista, como a superexploração do trabalho e a naturalização das desigualdades sociais.

Como adjetivar o comportamento de um grupo de pessoas que cantam o hino nacional em torno de um pneu de caminhão, que em círculo colocam os celulares na cabeça para entrarem em contato com os extraterrestres para que viessem em seu socorro, para que participassem do golpe de Estado que reivindicavam? Como não considerar teratológico o comportamento de um patriota que tenta sozinho parar, na unha, um caminhão, tenta impedi-lo de furar o bloqueio na estrada com seu próprio corpo? O que dizer de quem vai até um muro de quartel do Exército fazer orações contritas, chorar e se lamuriar diante da aproximação iminente da besta-fera do comunismo? O que dizer de uma ministra de Estado que viu Jesus numa goiabeira ou da militante que teve um ataque apoplético ao se deparar com a bandeira do Japão nos corredores da Câmara dos Deputados e achar que era a bandeira nacional que havia se tornado vermelha?

Mas esse surto coletivo que se seguiu à derrota eleitoral, é fruto de subjetividades autoritárias, que negam o princípio da realidade, que se fecham em realidades paralelas, que querem moldar a realidade conforme seu desejo e sua fantasia, gente que não quer encarar que o real não obedece aos desejos e não se conforma aos nossos egos. Gente egoísta, que só pensa em seu umbigo, em seu interesse, que se torna monstruosidade por egoísmo, individualismo e elitismo. No entanto, nos últimos tempos vemos eventos tão ou mais teratológicos que esses acontecerem, personagens e agentes sociais que parecem ter saído das catacumbas voltam a empestear a atmosfera de nosso país.

Um ex-juiz, considerado parcial pelo Supremos Tribunal Federal, que galgou uma cadeira no Senado Federal, continua desfilando o seu domínio da língua pátria em cada oportunidade que abre a boca. O herói nacional, aquele que até vestido de super-herói apareceu em capas de revistas, o paladino anticorrupção flagrado atolado até o pescoço em crimes de corrupção eleitoral vai depor perante um antigo par e me sai com expressões como “com mim”, “não foi com mim”. Mas, surpreendentemente, o presidente da Academia Brasileira de Letras sai em defesa de seu uso “popular e cotidiano” da língua pátria, já que o presidente da República, que nunca teve as mesmas oportunidades de letramento do douto juiz, que nunca passou num concurso para a magistratura e que nunca redigiu uma sentença colocando pessoas na cadeia, também cometeria deslizes de língua portuguesa, aliás o grande representante da literatura pátria (escreveu o que mesmo?), acha que também do ponto de vista moral o juiz da Lava Jato também só cometeu deslizes. Como em toda teratologia, o caso envolve questões de forma e de formação, inclusive de caráter.

O proprietário de um time de futebol, que conseguiu perder vinte e seis pontos de trinta disputados, que em dez rodadas passou de líder absoluto do campeonato brasileiro, com quatorze pontos de vantagem para o time que se tornou campeão, a quinto colocado, diz ter um relatório que prova que seu clube foi vítima de uma conspiração da Confederação Brasileira de Futebol e dos árbitros da competição. No mesmo instante, um tribunal do Rio de Janeiro destitui o presidente da CBF e coloca em seu lugar o presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva que, por coincidência, é muito ligado ao time reclamante e ao time nomeado de “time do cheirinho” por insistir em ser vice-campeão das competições que disputa. O mais teratológico nessa situação é que a queda de Ednaldo Rodrigues acontece depois que veio a público a notícia de uma reunião ocorrida entre os ex-presidentes da CBF, Ricardo Teixeira e Marcos Polo del Nero, aqueles que não podem se ausentar do país sob pena de serem presos por corrupção, em que teriam, justamente, proposto a queda do presidente da instituição maior do futebol brasileiro. Vários problemas formais ocorrem nessa teratológica situação, quem não se conforma quer que a realidade adquira a forma que ele deseja, quer que o já deformado conserte o que estaria fora de prumo.

Diante de uma onda de assaltos, furtos e arrastões no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, um grupo de praticantes de artes marciais, como o jiu-jitsu e mesmo alguns bad-boys, se organizam através do zap para saírem as ruas e fazer justiça com as próprias mãos, realizar o justiçamento, o linchamento de possíveis assaltantes usando paus, socos ingleses, qualquer instrumento que encontrem pela frente. Cometem crimes em nome de combater o crime, o que é bastante comum em nossa chamada segurança pública. Embora aqui não tenham a proteção da farda e da insígnia do Estado para cometer infrações a lei, para agirem em desconformidade com a norma formal, se arvoram a justiceiros por serem pretensamente homens de bem, aqueles que podem combater os maus lançando mão da volta a uma época do olho por olho, dente por dente. A justiça e a lei formal sendo substituídas pela vontade privada de vingança.

Mas, se estamos tratando das forças de segurança, nada mais teratológico de que o professor de cursinho e de formação de futuros policiais, Evandro Guedes, ensinando os futuros agentes da lei a estuprar mulheres mortas, isto mesmo, o ensino de estupro de cadáveres. Por meio de um vídeo, o ex-policial ensina, aos futuros partícipes das forças de segurança, técnicas para estupro de mulheres mortas. A situação ainda é mais teratológica, ou seja, expressa uma completa deformação moral e de valores, pois o professor de estupro de corpos sem vida se diz um defensor da família e um cristão. Talvez não haja figuras mais teratológicas, mais deformadas do ponto de vista subjetivo, do que muitos que se dizem seguidores de Cristo, pessoas de bem, defensoras da vida e da família. Algumas lideranças ditas cristãs são casos teratológicos, que mostram suas deformidades em praça pública. A líder evangélica que fazia sexo com seus filhos adotivos e que encomendou a morte do marido. Só esse ano mais de oitenta pastores foram denunciados por casos de estupro, de assédio sexual, de pratica de atos considerados atentatórios a honra e a moralidade, junto a seus seguidores, notadamente mulheres e crianças. Gente que enriquece, que se torna grandes empresários da fé, pregando em nome de um homem que disse que os ricos teriam dificuldade de conquistarem o reino dos céus. No Congresso Nacional os pretensos cristãos querem liberar o uso indiscriminado de armas, enquanto querem criminalizar o amor homoafetivo. Os cristãos liberam o uso indiscriminado de agrotóxico, atacam os direitos dos povos indígenas e se negam a consagrar um dia nacional de combate ao racismo e em comemoração da consciência negra. Os defensores da vida, que querem obrigar uma criança a ter filhos de um estuprador, são os mesmos que se opõem a todas as políticas sociais, que salvam vidas, todos os dias, da fome e da morte prematura, são os mesmos que fazem campanha contra as vacinas, o que pode levar a morte e a deformidade de milhares de crianças já nascidas, que não são apenas fetos.

Teratologias de um tempo de gente subjetivamente deformada pelo preconceito, pela ignorância, pela desinformação, pelo cultivo das paixões tristes: o ódio, a raiva, a inveja, o ressentimento, o egoísmo, a vaidade. Tempos de gente ideologicamente deformada, por um neoliberalismo que destrói todos os laços de solidariedade, empatia, que ameaça de esgarçamento os próprios laços societários. Tempos de gente que é deformada pelo desejo de propriedade, de lucro, de vantagem, de competição a qualquer custo. Tempos monstruosos onde já não há mais surpresa com os personagens, com aqueles que se destacam, que ganham fama e que se fazem às custas da prática de ações e discursos que expõem verdadeiros aleijões e deformidades morais e éticas, quando não estéticas mesmas. Que dizer da estética do senador cristão que, por mais de uma vez, apareceu no Parlamento claramente alcoolizado? Não me ocorre outro adjetivo que não teratológico, fora da lógica, desconjuntado, fora da norma, inclusive da estética.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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