Quando o público é aquilo que não é de ninguém

Sábado passado se comemorou o dia do funcionário público, dia que nem mesmo a maioria dos funcionários se lembra de comemorar, até porque, na maioria dos casos, não se tem muitos motivos para comemoração. Os funcionários públicos padecem de um grande desprestígio social, possuem uma baixa legitimidade junto a população, quase sempre são desvalorizados, inclusive pelas instituições públicas e gozam de uma imagem e reputação pouco lisonjeiras junto a sociedade.

Na verdade, tanto a forma como os funcionários públicos são vistos, como a forma com que muitos deles se veem, como concebem aquilo que fazem, advém da própria história de baixa institucionalidade e prestígio do que é público na sociedade brasileira. A distorção na maneira como no Brasil se concebe a noção de público (o público em nosso país não é o que pertence a todos, mas o que não é de ninguém, podendo por isso ser destruído, depredado e apropriado privadamente), se aguçou ainda mais nas últimas décadas de pregação da cartilha neoliberal entre nós, com uma participação decisiva dos meios de comunicação, a propagarem um discurso cotidiano contrário a presença do Estado, de desqualificação do que é estatal e do que é publico, em verdadeiras campanhas contra os serviços públicos visando sua privatização.

Somos uma sociedade que se estruturou num longo período de dependência colonial, em que as principais decisões de governo não aconteciam aqui. Por mais de trezentos anos o Estado foi uma instituição distante e com presença no território brasileiro mediante a intermediação das forças privadas e particulares locais. Os chamados “homens bons”, os senhores das terras, a pequena casta de proprietários rurais, que tinha acento nas Câmaras municipais eram os verdadeiros mandões do pedaço, submetendo os interesses públicos aos seus interesses privados e particulares.

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A escola seguida hoje pelo Centrão e pelo primeiro ministro ad hoc do Brasil, Arthur Lira, vem dessa longa tradição que se iniciou no período colonial de se confundir interesses públicos com interesses privados, de se colocar a coisa pública a serviço dos interesses particulares, de se apossar privadamente dos recursos e instituições do Estado (o chamado orçamento paralelo nada mais era do que isso).

O chamado coronelismo, que se explicitou na chamada Primeira República, significou, ao mesmo tempo, a dependência dos governantes de uma verdadeira pirâmide de troca de favores, lealdades e atendimento a demandas nada republicanas, advindas daqueles que queriam privatizar as finanças públicas e receber privadamente as benesses que o Estado podia oferecer, e a crescente dependência dos mandões locais das arcas do Estado para conseguirem reproduzir a sua dominação econômica e política em nível local.

No Brasil, pela formação tardia do Estado nacional e a dificuldade na formação de uma esfera pública, a maioria da população chega a naturalizar o fato de que as finanças públicas e a atuação do Estado beneficiem aqueles que assumem cargos públicos. Com certa naturalidade ouvimos as pessoas dizerem que se fossem elas que estivessem ocupando funções de governo, funções públicas, também as colocariam a serviço de suas necessidades e aspirações particulares, também “roubariam”, naturalizando a prática da corrupção. A maioria de nossa população não consegue imaginar que alguém vá para a vida pública trabalhar em benefício do público, que hajam políticos idealistas, que exercem a atividade pública movidos por causas e ideias, daí porque, votam com naturalidade naqueles que ficam famosos por “roubar mais fazer” ou que uma parcela crescente dos eleitores se abstenham de votar ou votem em branco e anulem o voto.

É com naturalidade que uma boa parcela da população assiste a casos de nepotismo, filhotismo e troca de favores. Muitas pessoas chegaram ao serviço público através de nomeações feitas a partir do apadrinhamento político, de indicações de aliados políticos e cabos eleitorais, quando não conseguem o emprego por serem parentes ou aderentes de figuras importantes na vida pública.

Essa é uma das matrizes do desprestígio social do servidor público e do serviço público, vistos como beneficiários indevidos de favores, sem terem a competência e o preparo técnico para ocuparem os cargos que ocupam (o que é verdadeiro em vários casos), seus cargos vistos como sinecuras, muitos deles tendo existência apenas para permitir que dadas pessoas recebam um salário acima da média e sem necessariamente sequer comparecer ao trabalho ou exercê-lo com presteza e dedicação. Mesmo após ser instituído o concurso público como única forma de acesso permanente ao serviço público, o descrédito quanto as formas de recrutamento dos servidores públicos permanece, com uma desconfiança generalizada quanto a seriedade e lisura dos próprios concursos públicos, além de que não se deixa de apontar que a contratação dos concursados nem sempre se faz na ordem de classificação, com dados candidatos com “costas quentes” passando na frente daqueles sem padrinhos fortes.

Mas a existência dos inúmeros cargos de confiança, de livre nomeação do governante de plantão, se dá flexibilidade as contratações, é motivo de crítica permanente dos meios de comunicação e fonte de questionamento por parte da população, embora a maioria, na verdade, admita que queria estar no lugar do nomeado e aspire ao que se chama de um cabide de emprego.

É com certo espanto e até condenação que parte da população vê um politico que não “ajuda” a sua família, que não emprega seus parentes. Sendo a instituição que vertebrou a sociedade brasileira, a família possui muito mais importância e centralidade, inclusive na vida pública, do que o Estado. A lógica do parentesco tende a se sobrepor a lógica republicana de um Estado efetivamente público, que se volte para servir o público e não os parentes, agregados, afilhados e amigos dos governantes.

Ora essa lógica também se estende aos funcionários públicos, já que muitos consideram e veem seu trabalho, as vezes conseguido através do favor, como algo que deve servir a seus interesses privados, que deve existir apenas para lhe conferir uma remuneração, de preferência que exija o menor tempo e carga de trabalho possível. Uma boa parcela daqueles e daquelas que procuram o serviço público não o fazem pelo desejo de servir as pessoas, de se colocar a serviço da população, que é a própria definição de servidor público.

Muitos encaram o serviço público como um emprego seguro, que vai lhe garantir estabilidade, e, pasmem, vai lhe permitir trabalhar o menos possível, burlar o máximo possível a carga horária, utilizando todos os expedientes, até a corrupção e a desonestidade abertas. Como em todas as profissões existem os excelentes funcionários públicos, os chamados “pé de boi”, aqueles que carregam uma repartição pública nas costas, que se fazem indispensáveis a qualquer administração, aqueles a quem todo mundo recorre porque sabe que vai ser bem atendido, mas não são estes, por esses motivos históricos que arrolei, que fazem a imagem do servidor público no país, como os governantes honestos, sérios e idealistas não fazem a imagem do que é o ator politico no Brasil.

Os servidores públicos, geralmente muito mal remunerados, se comparado com o que recebem aqueles que exercem as mesmas atividades no setor privado, não conseguem melhorar seus níveis salariais, entre outros motivos, pela falta de apoio da sociedade, por não gozarem de prestígio junto a população. Qualquer governo que trata mal os funcionários públicos muitas vezes recebe o apoio da população que tem um conceito muito negativo do servidor público, mesmo quando eles se mostram decisivos como foi o caso dos médicos/as e enfermeiras/os vinculados ao Sistema Único de Saúde durante a pandemia de Covid-19 ou os professores/as das escolas públicas que, mesmo, muitas vezes, trabalhando em condições precárias, conseguem fazer a diferença na vida de muitos alunos. Existe uma imagem negativa e distorcida dos servidores públicos que advém do fato de que setores da iniciativa privada querem se apossar de serviços públicos e contam com uma verdadeira máquina de propaganda contra aqueles que os exercem e garantem a sua existência e continuidade.

A tentativa recente de acabar com o instituto da estabilidade no emprego dos servidores públicos (talvez o pino da granada que Paulo Guedes disse haver colocado no bolso dos servidores) mostra a hostilidade ao funcionalismo público que advém de interesses privados, de representantes do capital, inclusive nos meios de comunicação, visando fragilizar os serviços públicos, acabando com o caráter de carreiras de Estado e não de governo que deve caracterizar o exercício da atividade pública, permitindo a demissão, tanto por motivos políticos, quanto por motivos de ordem econômica.

A reforma administrativa que Arthur Lira e o Centrão ameaçam toda hora de colocarem em votação no Congresso Nacional é feita contra os servidores. São os descendentes dos “homens bons” insatisfeitos com o fato de que o servidor público não é mais hoje um mero agregado, um pau mandado, um chaleira, um xeleléu, um puxa saco, um cão amestrado, um capanga, um jagunço do coronel de plantão (todos esses nomes já foram atribuídos aqueles e aqueles que ocupavam cargos públicos graças as benesses dos senhores de plantão), eles querem a volta do QI (do quem indica), eles querem voltar a lógica patrimonialista e pouco republicana do funcionário e da funcionária cabo eleitoral e eleitor e eleitora de cabresto.

Os funcionários e funcionárias públicos deviam ter a consciência que a força política da categoria depende da imagem que gozam junto a população, da qualidade do serviço que prestam, da forma como exercem sua função, da maneira como atendem as pessoas, como se relacionam com o público. Ser servidor público não é simplesmente estar a serviço do Estado, dos governos de turno, de realizar as tarefas que lhes são designadas em portarias e contratos, mas é, sobretudo, servir a população, exercer atividades que permitam melhorar a vida das pessoas. Toda vez que um servidor ou uma servidora trata mal o publico, atende com má vontade quem lhe procura, busca fugir das pessoas, nada faz para facilitar a vida de quem deve atender, está dando um tiro no pé, está abrindo o flanco para que se questione a existência do serviço público e, por extensão, dos servidores.

Mesmo com toda a propaganda negativa e o conceito social desfavorável que atingem os funcionários públicos, notadamente entre os mais pobres, aqueles que efetivamente precisam dos serviços oferecidos pelo Estado, em todas as suas instâncias e instituições, a maioria do povo brasileiro se perguntada lembrará de um servidor que lhe socorreu, que lhe atendeu, que lhe auxiliou, de forma eficiente e prestativa. No dia 28 de outubro toda a sociedade deveria comemorar e agradecer por termos serviços públicos, pois numa sociedade desigual, onde a carência é a marca da vida da maioria, sem os serviços públicos, sem os servidores públicos, a vida não só seria bem pior, como se tornaria impossível em dadas situações.

Como servidor público que sou, como alguém que fez toda a sua formação educacional no ensino público, que deve tudo o que tem na vida a empregos públicos e a competentes e atenciosos funcionários públicos, quero prestar minha homenagem e reconhecimento a parcela majoritária daqueles que fazem de seu dia a dia de servidor um serviço ao outro, ao semelhante, lamentando a existência do servidor carreirista e sem dedicação ao que faz e para quem faz.



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