Por que comemoramos a entrada de um novo ano?

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

À primeira vista, há uma espécie de contradição em se comemorar a entrada de um novo ano, pois isso significa que mais um ano se foi em nossas vidas, que ficamos mais velhos e que, portanto, nos aproximamos mais da morte. Haveria razões para que, ao invés de nos alegrarmos e festejarmos a passagem para um novo ano, nos entristecermos, ao nos pôr a pensar que temos menos tempo de vida, que deixamos de realizar, no ano que passou, muito do que havíamos planejado, que perdemos oportunidades que não voltarão a se oferecer. Aliás, as festas de final de ano, notadamente a famigerada festa de Natal, são uma das épocas do ano que mais se registram a ocorrência de suicídios, como a tragédia ocorrida com o youtuber P. C. Siqueira veio exemplificar, no final de 2023.

A véspera do Natal é muito dura para quem não tem familiares próximos ou para quem foi expulso de casa, para quem, por algum motivo, está banido do convívio familiar. Nem mesmo o refúgio nos bares, nos restaurantes, no cinema, no shopping é possível, já que tudo fecha em nome de que todas as pessoas, de que os funcionários, possam passar o Natal com a família, como se família fosse uma coisa universal, que todo mundo, necessariamente, a tivesse viva e em bom estado de relacionamento. Se os desgarrados não se juntarem na residência de alguém, se não arrumarem uma família substituta, ou ficam perambulando por uma cidade deserta ou se quedam solitários em suas casas e apartamentos, se embriagando sozinhos ou indo dormir na esperança de que aquela noite logo passe.

Como todo fim, o final de ano tende a nos infundir o sentimento da melancolia, uma sensação de perda, de que algo estamos deixando para trás, de que estamos chegando atrasados a um encontro que não houve.

O final do ano tende a nos deixar nostálgicos, pois nos convoca a fazer balanços do que vivemos, do que fizemos e não fizemos no ano que está acabando. No entanto, a convenção social nos obriga a nos alegrarmos, a festejarmos, a participar de uma comemoração, para a qual, nem sempre, estamos com o espírito efetivamente disposto e disponível. As festas de final de ano tendem a explicitar as situações de precariedade e abandono, as situações de solidão e isolamento. São terríveis para os apenados, para todos aqueles que se encontram hospitalizados, para todos os habitantes de asilos e instituições geriátricas, para as crianças que vivem em orfanatos, para os moradores de rua, para os homossexuais, transexuais e travestis (muitos deles rejeitados pelas famílias, proibidos de pisarem em casa), para todos aqueles e aquelas que vivem distantes dos seus parentes, de seus amigos, de seu país, que se encontram distantes dos seres amados.

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No hemisfério sul, pelo menos elas coincidem com a chegada do verão, pelo menos a natureza é cálida e calorosa. Imaginem o que é a coincidência entre uma vida desertada de calor humano, de relações afetivas e um final de ano gelado pelo inverno, pelo frio intenso, de ruas entupidas de neve e janelas embaçadas de umidade.

No entanto, todo mundo se sente na obrigação de fazer festa, de celebrar a chegada de mais um ano. As administrações públicas investem muitos recursos na preparação de queimas, cada vez mais duradouras, de fogos de artifício, na montagem de eventos grandiosos, para onde se dirigem todos aqueles e todas aquelas que não têm com promover sua comemoração particular. A multidão que lotou por três dias a praia de Iracema, para curtir um Réveillon (palavra estrangeira que muitos tem dificuldade em pronunciar e escrever), que entrou para a história como o de maior duração, como tendo atraído mais turistas do que o da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, é composta de uma maioria que, se não fosse a festa gratuita - com a qual o prefeito, candidato a reeleição, que não anda bem nas pesquisas eleitorais, busca conseguir popularidade -, não teria como se divertir, tendo que encarar a realidade de sua precariedade. Embora esses eventos obedeçam a velha lógica do pão e circo, que vem desde o império romano, não serei eu a condenar que, parte dos impostos que aquelas pessoas pagam, o ano inteiro, lhes seja devolvida em forma de divertimento, de acesso a dados artistas e a bens culturais que, sem as iniciativas do poder público (descontadas todas as falcatruas que, vez por outra, se revelam nessa relação entre empresários de artistas, artistas e gestores públicos) eles nunca teriam acesso.

Mas por que celebramos a passagem do ano? Por que nos vemos na obrigação de fazer festa na passagem para o primeiro dia de um novo ano?

Inicialmente isso obedece a, digamos, uma forma de alienação benfazeja. Ao invés de focarmos no fato de que mais um ano se foi, de que ficamos mais velhos e de que nos aproximamos mais um ano de nossa morte, preferimos pensar que mais um ano se abre a nossa frente, que tivemos a ventura de viver mais um ano, que a morte não nos alcançou no ano que se finda e que nos deixou ver o raiar de mais um período de doze meses. Preferimos ver o lado bom da moeda, ao invés de focalizarmos nas perdas, nos centramos nos ganhos. Ao invés de lamentarmos o que perdemos ou o que não fizemos no ano que se foi, preferimos renovar as esperanças, renovar o desejo de que tudo seja diferente no ano que se inicia, que consigamos realizar nossos desejos e sonhos no ano novo. Tomamos o ano novo como mais uma oportunidade que nos foi dada de realizarmos o que não fomos capazes no ano que se finda e de conseguirmos o que não fomos capazes de conseguir no ano velho. Tomamos o ano novo como a possibilidade de felicidades e alegrias que não vivemos no ano que estamos encerrando.

Na verdade, esse alegrar-se com o começo de um novo ciclo do tempo, com uma nova etapa temporal, esse hábito de festejar, de realizar rituais que marquem a passagem para um novo tempo, advém de práticas milenares dos seres humanos. As festas que hoje coincidem com o final do ano do calendário cristão e católico, eram festas pagãs, eram rituais que se destinavam a comemorar o solstício de inverno, eram festas que comemoravam a plantação e a colheita de outono e inverno. A Igreja Católica sobrepôs seu calendário religioso a essas festas da colheita, que celebravam a fertilidade da natureza, que procuravam agradecer aos deuses pagãos que regiam essas dimensões da natureza e da vida humana. O que se comemorava era a entrada em uma nova estação, em um novo ciclo do tempo, era a possibilidade de fartura que esse novo momento trazia para aqueles que viviam da agricultura. Se essas festas, até hoje, têm como um de seus aspectos relevantes o servir alimentos, a oferta de ceias, jantares, almoços, banquetes, é justamente porque as festas pagãs da colheita e da fertilidade giravam em torno do consumo dos produtos recém colhidos, eram a celebração da fartura, do fato de que a natureza fora dadivosa e generosa com quem nela plantara.

Mas o principal motivo que fazia com que esse momento de mudança temporal, de encerramento e começo de tempos fosse motivo de comemoração era que, durante muitos séculos, nós humanos possuímos uma visão circular ou cíclica do tempo. Tendo conceitos e formas de ver o tempo inspirados nos fenômenos da natureza como: fases da lua, estações do ano, subidas e descidas das marés, nascer e por do sol, a sucessão de dias e noites, os humanos pensavam o tempo como se ele descrevesse círculos, como se ele descrevesse um percurso e depois retornasse ao seu princípio.

Os nossos antepassados mais longínquos tinham muito mais motivos para comemorarem um ano novo do que nós, homens e mulheres da modernidade. Para nossos antepassados o tempo efetivamente se reiniciava a cada final de ciclo, ele retornava ao começo, ele voltava para onde tinha saído. Para eles, se usassem o nosso calendário, o primeiro de janeiro seria um dia muito alegre pois retornaríamos ao princípio dos tempos, significaria que ganharíamos o mesmo tempo de novo para viver. Aí não haveria perda de tempo, porque o tempo era recuperado. Aí não havia oportunidade perdida, porque bastava aguardar que ela se ofereceria de novo. Quando o saber histórico foi inventado na Grécia antiga o pressuposto era o de que, justamente, se alguém aprendia com os fatos que tinha vivido, um dia, quando eles voltassem a acontecer, quando eles retornassem, essa pessoa já saberia como agir, não cometeria os mesmos erros. Por isso o tribuno romano, Cícero, disse que a história era mestra da vida, porque você aprenderia com ela a não repetir as mesmas bobagens.

Com a emergência da forma moderna de ver o tempo, a partir do século XVIII, ou seja, a partir do momento em que passamos a figurar o tempo como sendo uma linha reta, um percurso que vai do passado ao futuro, uma espécie de seta que aponta sempre para a frente, com o fim da visão circular do tempo, deveríamos ter aberto mão de comemorar a chegada de novos tempo, porque eles passaram a significar não apenas possibilidades de ganhos, mas, principalmente, perdas irremediáveis, irrecorríveis. Se o tempo é uma linha reta, que foge na direção do futuro, nada do que fazemos ou que existe no tempo retorna. O círculo se abriu, se distendeu numa linha que não promete volta, retorno ou reencontro. Um tempo linear, um tempo regido pela ideia de mudança, de transformação, é um tempo que, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, diagnosticou como sendo um tempo que leva ao niilismo, ou seja, ao desejo de nada, já que tudo ele leva embora, ele carrega, ele destrói. Para que apostarmos em algo que sabemos que vai acabar? Quando o mesmo Nietzsche adotou a ideia do eterno retorno, quando fez dela uma prova ética, ou seja, para ele o humano superior, o super-homem, como ele nomeava, era aquele capaz de passar de novo, eternamente, tudo que passou na vida, ele queria contestar essa forma moderna de ver o tempo. A pessoa superior seria aquela capaz de dizer sim para a vida, de dizer, sim eu quero viver tudo de novo o que vivi. Quantos de nós teríamos coragem de, olhando para trás, mirando todas as dores, sofrimentos, desilusões, misérias, pelas quais já passamos, seríamos capazes de querer viver aquilo tudo de novo, eternamente, várias vezes?

Conseguimos festejar o ano novo, justamente, porque estamos tomados por essa visão moderna de tempo que, desvaloriza o passado, e faz agente apostar sempre no futuro, que o futuro será melhor. Abandonamos nosso ano velho, por melhor que ele tenha sido, com alegria, fazendo festa, comemorando, porque sempre apostamos que o futuro será ainda melhor, que o futuro sempre é melhor e superior ao passado. Vivemos numa corrida em direção ao futuro, nele apostamos todas as nossas fichas, sempre achamos que ele nos reserva dias melhores do que aqueles que vivemos. A modernidade nos trouxe os pensamentos utópicos, as utopias, sendo o progresso, o desenvolvimento, a revolução, a mudança, suas principais promessas. Frutos de uma cultura judaico-cristã, na qual a promessa, a profecia, a espera pela vinda do Salvador e da salvação, a espera e a esperança de uma vida melhor é sempre colocada no futuro, nem que seja depois da morte, estamos preparados subjetivamente para comemorar a vinda de um tempo sobre o qual nada sabemos (dai porque não há nada que faça mais sucesso por essas datas do que as previsões para o ano que se inicia), para nos atiramos no desconhecido, com alegria e festa, apostando, sempre, que o ano novo será melhor, será o ano de nossas vidas.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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