O São João não é mais o mesmo?

Legenda: Parque do Povo no São João de Campina Grande
Foto: Emanuel Tadeu/Divulgação

Estamos no mês de junho, a população do Nordeste, em sua maioria, se anima diante das festas juninas. Período em que muitos nordestinos voltam aos seus estados de origem, para visitar seus parentes e aproveitar o período festivo na região. Muitos deixam para gozar suas férias nesse mês, para poder fazer coincidir a estadia em sua terra natal com as festividades para os santos de junho. É o momento, em que em anos de chuvas regulares, está se realizando a colheita, notadamente do milho verde, com o qual se preparam as comidas que são consideradas típicas dessa época do ano: canjica, pamonha, milho assado e milho cozido. Momento de se comprar roupas novas, de se preparar para, quem sabe? encontrar sob as bênçãos de Santo Antônio, o amor de suas vidas, de conseguir o sonhado casório, entre os participantes das festas, entre os cavalheiros e as damas envolvidos na dança da quadrilha ou do forró.

Mas o que mais se ouve, nos dias que correm, é que o São João, que as festas juninas não são mais as mesmas. Elas que estavam ligadas ao próprio imaginário em torno da região, que remetiam esse espaço para o mundo rural, matuto, tradicional, da fazenda e do terreiro, da latada de terra batida, do forró de pé de serra, iluminado a lamparina de dois bicos, executado por sanfoneiros acompanhados de zabumba e triângulo, se tornaram grandes eventos urbanos, midiáticos, eventos comerciais e turísticos, que são promovidos seja pelo poder público, que neles encontram fundamental fonte de receita, seja pela iniciativa privada, empresarial, que também visa retirar lucros da promoção das festas.

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Esses dias as redes sociais se encheram de protestos e de relatos nostálgicos em relação as festas juninas realizadas nas últimas décadas no Parque do Povo, em Campina Grande, uma das maiores e mais tradicionais festas juninas do país, modestamente nomeada de “Maior São João do Mundo”. Quem conhece o bairrismo e o ufanismo de todo campinense, sabe que ali nunca se deixou por menos, tudo é o maior, é grande, até a cidade porta esse adjetivo no nome. Mas a festa que era tradicionalmente realizada pela Prefeitura Municipal, foi privatizada, foi entregue a empresa Arte Produção de Eventos Artísticos e Locação Ltda, cuja sede fica em Fortaleza. Esse ano completa quarenta anos que se realiza o São João, no Parque do Povo, grande espaço para eventos ao ar livre construído pelo prefeito Ronaldo Cunha Lima, tio-avô do atual prefeito da cidade, Bruno Cunha Lima, que rompendo com a tradição familiar de fazer da festa uma das principais armas políticas de perpetuação da família no poder municipal, por décadas, resolveu transferir a festa para a responsabilidade de uma empresa privada que, como era de se esperar, está promovendo uma elitização da festa.

O Parque do Povo, que antes fazia jus a esse nome, dando acesso a festa a todas as pessoas, independente da condição social, e permitia que muitas pessoas da cidade montassem ali suas barracas para a venda de comida e bebida, o que significava para alguns a renda com que teriam que viver grande parte do ano, foi sendo cada vez mais destinado aos turistas e as pessoas de classe média da cidade. Alegando motivos de segurança, o Parque hoje é todo fechado, todo cercado, a maioria das barracas pertencem hoje aos grandes estabelecimentos comerciais do setor de alimentos da cidade, já que as taxas cobradas para se ter uma barraca instalada nesse espaço se tornaram proibitivas, além de que a mudança no próprio layout da festa levou a uma redução muito grande do número de barracas, abrindo espaço para a construção de camarotes junto ao palco, para serem vendidos por um alto preço. Esse ano a empresa proibiu até mesmo que ambulantes vendam seus produtos nas ruas próximas ao Parque, para obrigar o consumo no interior da festa, o que levou a um inédito protesto pelas ruas da cidade.

Atrações que traziam as camadas populares, notadamente dos bairros da cidade para o Parque, como as quadrilhas foram excluídas da festa, tendo que se apresentar em outro espaço, a praça da Estação Velha, sob o patrocínio do município. Mas o que muitos reclamam é os nomes que são contratados para se apresentar no palco principal da festa, muitos deles que se dedicam a gêneros musicais sem qualquer relação com o período junino. O que importa é a popularidade do artista e, em muitos casos, comenta-se, as ofertas vantajosas feitas aos promotores por empresários e agentes das atrações contratadas.

Os preços cobrados pelas comidas e bebidas no espaço da festa afastou cada vez mais os populares, que passaram a procurar outras alternativas de diversão em seus próprios bairros ou nos espaços em torno do evento. Ainda não se está cobrando ingressos, embora tudo indique que se vai caminhar para isso, mas a maioria dos frequentadores mais pobres vão apenas poucas noites e mais observam do que participam do evento, muito distinto do que acontecia anteriormente.

Mas essa não é uma especificidade da festa de Campina Grande, muitas outras são hoje grandes eventos comerciais e urbanos, voltados para atender ao turismo de eventos. Portanto, parece plenamente justificado o sentimento de que as festas juninas não são mais as mesmas, essa nostalgia em torno de um São João dito tradicional, que teria ficado no passado. O caso de Campina Grande é interessante porque os relatos tomados de saudade e sentimento de perda se dão em relação a uma festa que estava longe de obedecer ao modelo dito tradicional da festa. O evento que esse ano completa quarenta anos, que muita gente hoje recorda saudosa, não possuía nada do formato dito tradicional dos festejos juninos, associados ao ambiente rural, tal como descrevi no segundo parágrafo desse texto.

O São João que é objeto de lamento saudosista em Campina Grande já era uma festa completamente inovadora em relação a imagem tradicional dos festejos de junho. Campina Grande foi, junto com Caruaru, pioneira na exploração dos eventos juninos como um grande evento voltado para a atração de turistas visando a movimentação da economia da cidade, um grande espetáculo patrocinado por grandes empresas nacionais e internacionais, um evento com grande promoção em todas as formas de mídia. O São João campinense, que hoje muitos lamentam o fim, ocupava páginas inteiras das principais revistas semanais do país, e conseguia que a principal rede de televisão do país, a Rede Globo, desse espaço para entradas especiais em sua programação direto da cidade, em programas de grande audiência, como o dominical dirigido por Fausto Silva.

Ou seja, quando ouvirmos o enunciado de que o São João não é mais o mesmo devemos nos perguntar em que época ele permaneceu sendo mesmo, em que época as manifestações culturais permaneceram imóveis, sem modificações? Podemos sim discutir e questionar a direção das mudanças, para onde as transformações em curso está levando a festa, o caráter excludente que está se acentuando, embora Campina Grande, como uma típica cidade onde a classe média tem muito expressão seja uma cidade excludente, não é de hoje. Não podemos esquecer que o ex-prefeito Cássio Cunha Lima, grande promotor do São João que hoje as pessoas lamentam o fim, foi quem decretou o fim do carnaval na cidade, porque só os pobres ficavam para os festejos, com as classes medias demandando as praias de João Pessoa ou os carnavais de outras cidades como Olinda, Recife e Salvador.

Em nome de privilegiar a Micarande, o carnaval fora da época que havia criado, um evento por definição excludente, com seus blocos com abadás caríssimos e cordas a separar os que não podiam pagar pelas roupas, restando para os mais pobres apenas acabar com suas mãos sangrando puxando e segurando o objeto de sua exclusão, ele decretou o fim do carnaval da cidade, pois o município não ia gastar dinheiro com a montagem de estruturas e a contratação de artistas para atender apenas aos periféricos da cidade.

Devemos ter cuidado com essa forma de pensar conservadora e reacionária de que aquilo que é popular deve permanecer fossilizado, deve manter uma pretensa tradicionalidade que é sempre uma invenção de quem muitas vezes apenas vê de fora o evento. Não tenho dúvida de que as camadas populares do Nordeste inventarão novas formas de brincar as festas juninas, apesar e por serem marginalizadas dessas grandes festas para turista ver e classe média consumir.

Os pobres possuem jogo de cintura suficiente para reimaginar a festa, reinventar formas de se divertir. Se a pirâmide do Parque do Povo deixar de ser o lugar do encontro dos personagens populares mais animados e engraçados, se lá deixar de exalar o cheiro do perfume, da poeira e do suor que nasce dos corpos e do arrastar dos pés daqueles que só tem a garrafa pet cheia de calcinha de nylon, de cachaça para animar toda a noite, eles criarão e se apropriarão de outros espaços para dar vazão a seus desejos, sonhos, fantasias, seu humor e sua animação.

Se a pirâmide já não for o lugar de mulher dançar com mulher, da travesti exibir suas formas e suas performances na dança, de homens dançarem sozinhos com uma parceira ou um parceiro imaginários, eles, apesar da empresa cearense querer vê-los longe daquele espaço, irão para as ruas adjacentes, vão continuar comendo o churrasquinho fumacento e fumando o baseado que os animarão para uma noite em que procurarão esquecer a miséria, a injustiça, a exploração, as humilhações, que muitos enfrentam todos os dias. Muitos, desdentados e mal-vestidos, farão de uma esquina qualquer seu palco e cantarão em altos brados trechos de canções, de forrós eternos ou cairão na pisadinha, embora tenham certa dificuldade de se por de pé.

Enquanto a classe média vai para as redes sociais fazer textões saudosistas sobre um São João que estaria sendo tragado pelas garras do capitalismo, como se aquele de que recordam com saudade já não o fosse. Eles reclamam em nome dos populares, dizem que a festa não é mais popular, que o Parque não é mais do povo, mas será que alguma vez foi? Talvez essa classe média sinta saudade é de uma festa em que elas eram as principais presenças e que agora também elas estão com dificuldade de participar. Os populares, o povo, dará um jeito, como sempre deu, inventará seus próprios parques e reinventará a festa, como sempre fizeram. Foi graça a eles que ela nunca morreu, muito antes de interessar ao poder público ou a empresas de promoção de eventos, elas a fizeram perdurar a recriando, a reinventando permanentemente e farão novamente, esperem!

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.