Nordestinos contam medalhas em busca de afirmação

Legenda: Ítalo Ferreira é um dos nordestinos que volta das Olimpíadas com medalha de ouro
Foto: Yuki Iwamura / AFP

Um fenômeno interessante, ocorrido durante a realização dos Jogos Olímpicos de Tóquio, que se encerraram no domingo, foi o fato de que tanto os nordestinos, como seus simpatizantes, em todo país, se puseram a chamar atenção para o lugar de origem do atleta ganhador de medalhas para o Brasil, quando ele ou ela eram nascidos em algum estado do Nordeste. As primeiras medalhas, ganhas por Rayssa Leal, nascida no Maranhão, e Ítalo Ferreira, atleta potiguar, dispararam as postagens nas redes sociais, exaltando a nordestinidade das ganhadoras e ganhadores de medalhas. 

Desde o enunciado clichê, slogan de famosa rede de supermercados da região, posteriormente vendida para uma empresa americana, “orgulho de ser nordestino” até o separatista “o Nordeste é meu país”, uma versão ao norte do separatista, racista e preconceituoso movimento “o Sul é meu país”, apareceram atrelados ao bom desempenho de atletas nascidos nos nove estados da região, nas disputas por medalhas no Japão. 

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Governadores de estado, parlamentares nordestinos, foram às redes sociais comemorarem como um feito de seus estados as vitórias individuais e coletivas dos atletas, que, na verdade, custaram muito esforço pessoal e familiar, às vezes sem o devido apoio do poder público.

O mais extravagante é que, até em esportes coletivos, como o futebol, a origem nordestina de atletas como Matheus Cunha, autor do primeiro gol, no jogo final contra a Espanha, foi destacada. Era como se ele tivesse ganho sozinho a medalha, sem a contribuição de outros dez atletas, muitos deles nascidos em outras regiões do país. Embora tenha sido de um atleta paulista, negro, o jogador Malcom, o gol que desempatou a partida e deu a vitória ao Brasil, só se falava do atleta paraibano que teria dado a segunda medalha de ouro para o futebol brasileiro. 

Em dado momento do torneio, o Nordeste foi, inclusive, colocado no quadro de medalhas e, para o deleite da euforia regionalista, se dizia que a região ficava a frente de importantes países, de virtuais potências olímpicas. Vivemos nesses dias uma explosão do bairrismo e da retórica regionalista nordestina. Mas que reflexões podemos fazer em torno desse curioso fenômeno, uma região que comparece sozinha às Olimpíadas, sem o restante do país, fato inédito na história dos jogos. 

Só faltaram as imagens com o desfile da bandeira regional, possivelmente de chita ou de renda de bilro, na cerimônia de abertura, com os atletas devidamente paramentados com um uniforme que lembrasse cactos e com chapéus de cangaceiros.

A primeira conclusão que podemos tirar desse fenômeno é a de que os nordestinos vivem em busca de reconhecimento. Sem se dar conta, essa atitude expressa a internalização coletiva de um complexo de inferioridade, de uma baixa autoestima. Vitimados nacionalmente por arraigados preconceitos, menosprezados e tidos como gente de segunda categoria, os nordestinos terminam por internalizar essa subalternidade, terminam por se sentirem menores. Isso leva a que toda e qualquer ocasião em que um nordestino se sobressaia sirva para a realização de uma catarse coletiva, sirva de meio de afirmação de cada um dos habitantes ou filhos da região. 

A vitória de um atleta nordestino é uma espécie de revanche, de vingança em relação a todas as situações de preconceito e humilhação, de rebaixamento e menoscabo vividas por muitos dos habitantes da região, notadamente quando estão fora de seu espaço. Um atleta nascido no Nordeste não conquista sozinho a vitória, ele conquista a medalha para cada um dos nordestinos, que assim se afirmam como capazes, como hábeis, como inteligentes, como vitoriosos, como vencedores, na contramão de como os nordestinos são vistos e ditos pelo discurso do preconceito de que são vítimas.

Ninguém se pergunta do porquê que as espetaculares vitórias da moça negra de Guarulhos, numa modalidade como a ginástica artística, não geraram nenhuma reação de afirmação coletiva por parte dos paulistas? Nem do porquê que a medalha de ouro do skatista catarinense Pedro Barros não gerou tamanha comoção entre seus conterrâneos? Para os paulistas e catarinenses, são apenas mais algumas vitórias, que são tomadas com naturalidade em terras de vencedores, de gente vista e dita como superior e mais apta para feitos como esse. Embora eu duvide que muitos paulistas se identifiquem com a cor e a história de Rebeca Andrade e, até por isso mesmo, suas vitórias não são assumidas como vitórias coletivas, de todos os paulistas, mas como vitórias pessoais e familiares, foi essa a narrativa nos meios de comunicação de São Paulo, não se viu ninguém comemorando uma vitória do estado, até porque ele não precisa, já é visto como vencedor.

O nordestino tido como incapaz, inábil, atrapalhado, iletrado, pouco inteligente, perdedor, destinado apenas ao trabalho braçal, a ser pião de obra, se projeta no conterrâneo vitorioso, se sente redimido pelo triunfo do filho da terra, que vem desmentir todos esses estereótipos.

Vistos como seres de cabeça chata, corpo desengonçado, esquelético e amarelado, os nordestinos se descobrem atletas, se descobrem capazes de fazer grandes feitos com seus corpos afrodescendentes, caboclos, com os corpos que já foram atribuídos a uma sub-raça, como é o caso do canoísta baiano Isaquías Queiroz, que ainda fez questão de lembrar que seus feitos se devia a programas criados por um presidente nordestino, como o Segundo Tempo e o Bolsa Atleta, o que a grande mídia faz questão de silenciar, um presidente também vítima do implacável preconceito contra sua origem social e regional.

Acho que outro dado para entendermos esse fenômeno curioso é, justamente, a imagem de que o Brasil vive uma secessão política, uma divisão entre um Nordeste pretensamente vermelho, de esquerda, de oposição ao governo Bolsonaro e um Sul bolsonarista, reacionário, fascista. Foi curioso ver como pessoas identificadas com a esquerda, filhas e moradoras de outras regiões do país, embarcaram na onda de exaltação das conquistas nordestinas em Tóquio. Era como se cada vitória de um atleta nordestino fosse a vitória da parte vermelha do Brasil, do país petista, contra o Brasil que desfila em motociatas atrás do presidente sem compostura, do Brasil azul ou verde e amarelo. Comemorava-se as derrotas dos atletas que seriam bolsonaristas, como o paulista Gabriel Medina e os jogadores do time de vôlei masculino (noutra redução grosseira, pois duvido que Douglas, por exemplo, seja bolsominion). 

Essa mistificação leva, inclusive, ao discurso do “Nordeste é meu país”, de que o Nordeste separado não teria eleito o atual presidente, (mas também não poderia ter eleito nem Haddad, nem Lula, radicados em São Paulo) esquecendo que milhares de nordestinos contribuíram para a vitória de Bolsonaro e que ainda podemos encontrar fanáticos defensores dele em nossas próprias famílias, grupos de amigos, colegas de trabalho ou vizinhos. Essa geografia política simplista não se sustenta diante da menor observação.

Quando nos tornaremos uma região vencedora? Quando serão dadas aos nordestinos as condições necessárias para serem vitoriosos em todos os campos de atividades? Quando os nossos atletas não precisarão iniciar a vida surfando a miséria, a fome e numa tampa de isopor como ocorreu com Ítalo Ferreira? Nossos atletas merecem todo o nosso reconhecimento, mas não devemos nos contentar com nos projetarmos em suas vitórias. Temos que lutar por respeito e reconhecimento dentro do país e como parte dele, lutando pelo o que são nossos direitos. Um dia, espero, não precisaremos nos afirmar através dos vencedores que, quase por milagre, surgem entre nós, pois a vitória será rotina na vida de todos.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.