Militares: entre a corrupção e a subversão

Quando promoveram o golpe de Estado de 1964, as Forças Armadas apresentaram como justificativa para o rompimento com a legalidade constitucional e democrática, o que chamaram de combate à subversão e à corrupção. João Goulart, eleito pelo sufrágio universal vice-presidente da República, e empossado no cargo de presidente, seguindo os ditames constitucionais, diante da renúncia de Jânio Quadros, e referendado democraticamente pela vitória em um plebiscito que restabeleceu o regime presidencialista no país, foi apeado do poder pela força das tropas, com o amplo apoio das forças políticas civis conservadoras, da grande imprensa e de amplos setores da sociedade, convencidos de que a subversão comunista estava batendo às portas do país, que os agentes de Moscou estavam instalados na administração do Estado e que uma ampla parcela daqueles que desempenhavam funções públicas estavam atolados em casos de corrupção.

Os militares, com a ajuda luxuosa da grade mídia, conseguiram construir uma imagem de si mesmos e do regime ditatorial que implantaram no país, muito distante do que efetivamente foi a realidade. Ainda hoje, os setores de extrema-direita, como os bolsonaristas, cultuam uma imagem dos militares e do regime militar que foi construída durante a ditadura, muito graças a propaganda oficial do regime e a censura que impôs as comunicações, a cultura, as artes. O discurso de que os militares não só são guardiões da ordem, como são os seus fiadores e tutores, de que eles devem intervir toda vez que haja uma ameaça a ordem vigente se fortaleceu nesse contexto. Mas, nesse discurso há, logo de saída, uma contradição, como se pode ser golpista e defender a ordem, e há uma pergunta a se fazer, que ordem golpistas podem estar defendendo? Golpistas, que desrespeitaram os preceitos constitucionais, não podem ser os fiadores da ordem constitucional. O velho discurso anticomunista, que nos dias de hoje beira ao delírio, já que o comunismo fracassou em todos os lugares onde foi implantado e não passa hoje de um fantasma que os reacionários trazem para o meio da sala para tentarem barrar qualquer transformação social que venha mexer com os privilégios, inclusive da casta fardada, serviu de base para que um golpe contra a democracia, uma ditadura fosse apresentada como um gesto em defesa do regime democrático, aleivosia que costuma ser repetida nas ordens do dia, lidas nos quarteis, quando ainda se ousa comemorar o 31 de março, como uma contribuição dos militares para a preservação das liberdades democráticas.

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O que houve em 1964 foi uma subversão da ordem constitucional e democrática, uma subversão política na busca da preservação de uma ordem econômica e social injustas, de uma sociedade marcada pela concentração da propriedade e da riqueza, uma sociedade marcada pela miséria de amplos setores da população, uma sociedade excludente, racista, autoritária, traços que o regime ditatorial pós-64 só fez ampliar e radicalizar. A ordem de que se falava não era a ordem política, mas a ordem econômica capitalista, que no caso do Brasil é um capitalismo para poucos, para uma casta privilegiada, superendinheirada, que financiou e apoiou o golpe, inclusive o aparato repressivo montado pelo regime, para matar e torturar seus oponentes. Os militares conseguiram transformar um ato de subversão da ordem democrática em um evento em defesa da ordem, em uma intervenção providencial e benfazeja na vida nacional, que teria impedido que o país se transformasse numa “república sindicalista”, fantasia que nunca sequer foi bem explicada.

Mas, outra grande justificativa para o golpe de 1964 foi a corrupção. Os militares possuem uma imagem na sociedade de que são pessoas incorruptíveis, que representam a seriedade, o amor à pátria e à coisa pública, que seriam exemplos de honestidade, disciplina, honradez, reservas morais da nação. A grande imprensa, o chamado quarto poder, que se fortalece sempre que desqualifica os demais poderes, que aparece, também, como sendo a reserva de moralidade que a sociedade teria, militou em torno da desqualificação e criminalização da política, como fez recentemente nos episódios do chamado mensalão e no apoio incondicional a operação Lava Jato, que levou a ascensão do fascismo ao poder, associando exercício da atividade política a corrupção. Embora muitos políticos contribuam para que assim se veja e se pense, a sociedade brasileira é propícia a aceitar o discurso do combate à corrupção, muitas vezes feito por corruptos notórios, justamente por terem naturalizado a ideia de que todo político é ladrão. Para muitos, mesmo que nunca nada tenha sido encontrado ou provado contra ele, Lula não pode ser uma pessoa honesta porque é um agente da política e todos seriam por definição desonestos. Esse imaginário que associa, necessariamente, vida pública e interesses escusos, atendimento a interesses privados (que inclusive atrai para a política muitos desonestos e aproveitadores), torna a sociedade brasileira presa fácil dos reacionários e autoritários, de todos aqueles que, em nome do combate a corrupção, passam por cima das leis, da Constituição, ignoram direitos fundamentais, como foi o caso do juiz Sérgio Moro e dos procuradores lavajatistas.

Os militares conseguiram facilmente o apoio de grande parcela da população para o regime ditatorial, que implantaram, através do discurso do combate a corrupção, convencendo a todos de que eram paladinos da moralidade pública, que, por serem militares, por não serem políticos, seriam estritos observadores das leis e das normas, homem rigorosos e sérios, que não compactuariam com os malfeitos dos civis, sempre vistos como suspeitos de serem mais susceptíveis de ser corrompidos. Quando o tenente Mauro Cid, flagrado como agente de desvio de patrimônio público para o exterior, vai a CPMI da tentativa de golpe de 8 de janeiro, vestindo a farda do Exército, o faz porque sabe que as Forças Armadas gozam de uma imagem de respeitabilidade, de incorruptibilidade. Ele quis encenar, ao comparecer, mesmo preso e portando uma tornozeleira eletrônica, fardado, essa pretensa isenção dos militares de participação em coisas malfeitas.

No entanto, ao contrário do que aconteceu durante a ditadura militar, quando a censura política e midiática não permitiu que se ficasse sabendo do envolvimento de militares em casos de corrupção, com a nova tomada do poder pelos militares através da eleição de um deles para a presidência da República, com a imprensa livre podendo fiscalizar os atos desse governo, mesmo diante de toda a hostilidade e das dificuldades colocadas para a transparência dos atos de governo, muitos militares foram flagrados não apenas envolvidos em casos de corrupção, mas de subversão da ordem democrática. O governo do capitão Jair Bolsonaro e a participação maciça de militares em toda a administração pública veio expor e contestar muitos dos mitos que se construiu em torno desses personagens e de suas participações na vida pública brasileira. Com o desastroso desempenho do general de divisão e expert em logística Eduardo Pazuello, no comando do Ministério da Saúde, durante a pandemia do covid-19, o mito do militar preparado, mais vocacionado para o serviço público, caiu por terra. O que se viu foi um ministério incompetente, negacionista, que sequer foi eficiente na logística necessária para se levar oxigênio para a cidade de Manaus ou realizar a vacinação das pessoas. O que se viu foram militares envolvidos na tentativa de receber polpudas propinas quando das negociações para a compra de vacinas: desde sargentos como Roberto Dias, passando por coronéis como Marcelo Blanco, Pires, Guerra, Odilon, Hélcio e até o major Handerson.

As apurações mais recentes da Polícia Federal é uma pá de cal na ideia de que militares não são subversivos ou corruptos. A tentativa de golpe de Estado do dia 08 de janeiro contou com a participação e o beneplácito de setores das Forças Armadas. O golpe vinha sendo urdido e preparado desde, pelo menos, a derrota eleitoral de Bolsonaro. O alto comando do Exército foi conivente com a montagem e permanência de acampamentos de bolsonaristas nas portas dos quarteis, que reivindicavam um golpe militar e a subversão da ordem democrática, chegando a proteger os golpistas, evitando a prisão deles na noite de oito de janeiro, em frente ao QG em Brasília. Militares facilitaram e participaram da invasão da sede dos três poderes, notadamente, do Palácio do Planalto, por cuja segurança eram responsáveis. Militares pertencentes ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República continuou informando Mauro Cid, o ajudante de ordens de Bolsonaro, sob a agenda e o aparato de segurança do Presidente Lula, mesmo depois dele empossado. A participação de militares de diversas patentes na tentativa de subversão da ordem democrática está mais do que provada, há imagens de alguns deles participando diretamente dos atos de invasão dos prédios dos três poderes e mensagens de whatsapp de militares tramando o golpe, discutindo a posição do Alto Comando e como o golpe se daria, apostando, inclusive, na participação de dados efetivos militares.

Mas, a última semana foi devastadora para a imagem do militar incorruptível, símbolo de moralidade e probidade. O episódio da tentativa de entrada ilegal no país de um estojo de joias que seria um presente para a primeira-dama e para o presidente da República, envolveu um almirante, um militar de alta patente da Marinha, que trouxe clandestinamente, na bagagem de um outro militar de mais baixa patente, os mimos do governo saudita, que tentou desembaraçá-lo na alfândega, tentando dar uma carteirada, voos de militares e funcionários públicos em aviões da Força Aérea, para tentar reaver as joias, e se concluiu com a participação de um general do Exército, membro da alta cúpula da força, que vendeu as joias desviadas do patrimônio público, nos Estados Unidos, onde ocupava a presidência da Apex, agência voltada para incentivar as exportações, que no apagar das luzes do governo Bolsonaro parece ter se transformado numa agência de exportação de muamba.

O governo militar de Jair Bolsonaro poderá entrar para a história como o mais corrupto que já se instalou em Brasília. Uma verdadeira praga de gafanhotos, uma trupe de gente ávida por amealhar dinheiro de todas as formas e na maior quantidade possível. Nem as moedas e as carpas do lago do Palácio escaparam. Nunca as Forças Armadas brasileiras saíram tão arranhadas em sua imagem, como dessa aventura fascista e militarista que foi a ascensão de um militar de péssima reputação, expulso da instituição por mal comportamento, mas que foi abraçado como uma nova possibilidade de as Forças Armadas interferirem no processo democrático brasileiro, abandonando suas tarefas constitucionais e se imiscuindo naquilo que não deveriam se meter. Desde as absurdas mordomias em um país em que a fome crescia e se espalhava: picanhas, leites-condensados, aposentadorias especiais, filhas que recebem aposentadorias a vida inteira, até o patético episódio da compra de Viagra e próteses penianas, o mais grave é termos observado a péssima formação democrática e técnica de militares ávidos por sinecuras, cargos, salários astronômicos, mordomias, atolados em casos de corrupção, peculato, tráfico de influência, sendo capazes de, visando perpetuar essa situação, apoiarem a desmoralização das instituições, do sistema eleitoral e participarem da tentativa de subverterem a ordem democrática, de darem mais um golpe militar na já acidentada história de nossa República.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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