Homossexualidades e homoafetividades: a constante luta pela palavra
Acabo de ler o romance do escritor cearense Stênio Gardel, publicado em 2021, pela editora Companhia das Letras, intitulado A palavra que resta. Ele trata da relação amorosa e sexual vivida por dois adolescentes sertanejos: Raimundo Gaudêncio e Cícero, relação clandestina que, quando revelada aos pais, gera a separação do casal e a fuga de Raimundo para a cidade. Desse amor resta apenas uma carta, escrita por Cícero, propondo a fuga dos dois e a vivência do amor e do desejo que os unia longe de suas famílias. Mas, Raimundo era analfabeto e não quis que sua irmã Marcinha ficasse sabendo do que nela era dito, já que pensava se tratar de uma carta de despedida. Durante cinquenta anos aquela carta o acompanhou, sem que fosse lida, sem que as palavras, que era tudo que sobrara como testemunho daquele amor, fossem decodificadas. Somente, aos setenta e um anos, Gaudêncio, como Cícero o chamava, resolve aprender a ler para poder, finalmente, saber o que afinal o seu amado tinha lhe dito antes que não mais se vissem.
Raimundo crê que Cícero desistira da relação, dado que ele não comparece ao encontro marcado na beira do rio, onde existia uma cruz que, mais tarde ficaria sabendo, era dedicada a um tio seu, Dalberto, um irmão de seu pai, Damião, que foi ali afogado, assassinado por seu avô, por estar apaixonado, por estar deitando com André, filho de um vizinho, Cândido. Se do amor entre Gaudêncio e Cícero restaram aquelas palavras escritas, aquela carta nunca lida, no caso de Dalberto e André qualquer palavra foi impossibilitada, qualquer dizer foi interdito, impedido pelo afogamento de Berto, restando apenas a cruz. Ao levar o filho amarrado até o rio, ao fazê-lo caminhar até o fundo, mesmo sabendo que ele não sabia nadar, o avô impedira que qualquer palavra fosse dita. Ao retirar o ar, o fôlego do próprio filho, o patriarca sertanejo, impedira que qualquer testemunho ficasse daquele amor que considerava vergonhoso e maligno.
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Como diz a escritora Socorro Acioli, A palavra que resta, é uma poderosa narrativa sobre a exclusão, em suas várias facetas: a exclusão trazida pela pobreza (Raimundo e Cícero são dois meninos nascidos na miséria), a exclusão trazida pelo analfabetismo (os dois amantes se desencontram, têm seus destinos modificados, porque um deles não sabe ler e o outro confia que ele entregaria a carta para que sua irmã alfabetizada lesse), a exclusão trazida pela condição homossexual, pelo preconceito, que resulta na solidão, na destruição de vidas. É um romance em que, o próprio estilo, em que a própria forma da narrativa, se articula e figura o título da obra.
Assim como Graciliano Ramos buscou uma forma de escrever que figurasse a própria aridez da terra, da vida e a precariedade da linguagem de seus personagens, Stênio Gardel, também adota uma escrita enxuta, quase telegráfica, como se o seu romance também fosse escrito sob a ausência de palavras, com as palavras que restaram, que ainda puderam ser ditas sobre a história que conta. A linguagem está longe do barroquismo de muitas obras que têm por temática o sertão e a vida sertaneja.
O assunto que a obra aborda está longe das temáticas clichês vinculadas ao espaço sertanejo e nordestino. Os amores e desejos homossexuais e homoafetivos não se coadunam com o estereótipo do sertanejo cabra-macho, das masculinidades exacerbadas que caracterizariam o ser o homem no e do sertão, ainda mais o. homem pobre, o trabalhador braçal sertanejo. É muito interessante que seja um homem pobre, um pai tradicional sertanejo, Damião, que constitua o ponto de ligação entre as duas histórias de amor homossexual que são narradas no romance. Damião é, ao mesmo tempo, o irmão que sabe dos segredos de Dalberto, que não o discrimina, que o ama a ponto de fixar a cruz que o recorda na beira do rio, como é o pai de Raimundo, muito mais compreensivo diante da confissão do filho de seu amor por Cícero, do que a mãe, que é quem expulsa o filho de casa.
A grande preocupação é sempre com o que os outros vão dizer, com o que os vizinhos vão falar. A grande dificuldade é sempre como se vai dizer uma coisa dessas para o pai, para a mãe, para a família, para os amigos. Desde as práticas e amores sodomíticos, pederásticos na Idade Média, que a questão é o de dizer seu nome, é de serem ditos, falados. Esses desejos, esses amores, essas práticas desde o medievo estão destinados ao segredo, a clandestinidade, a se esconder da palavra alheia e até de sua própria palavra. A própria posição da Igreja Católica, até bem pouco tempo, era mais preocupada com o dizer, com o ficar sabendo, do que com o fazer ou o sentir. Era a pregação oficial da hipocrisia, seja, mas não pratique, se praticar não diga, mantenha em segredo. A mesma política adotada pelas Forças Armadas norte-americanas, não importa o que você faça em sua cama, na sua intimidade, o fundamental é que não se declare, não se manifeste, não faça público o seu desejo, a sua orientação sexual. A heterossexualidade se garantiria assim como majoritária, como sendo a única forma de desejo e afeto existentes, como sendo a norma, a normalidade. À medida que os amores e desejos homossexuais, bissexuais, transexuais, permanecerem em silêncio, não tiverem acesso a palavra, não puderem dizer seu nome, não puderem enunciar suas verdades, se aceitará como verdade que a heterossexualidade é natural e majoritária.
Não é mera coincidência que estejamos assistindo, nas últimas semanas, a mais uma tentativa de invisibilizar os amores e desejos homossexuais e homoafetivos. A bancada evangélica fundamentalista, a bancada homofóbica na Câmara dos Deputados, desengavetou um projeto de lei apresentado, em 2007, pelo então deputado Clodovil Hernandez, que reconhecia e regulamentava o casamento civil entre pessoas homossexuais, para desvirtuá-lo completamente. Sob a relatoria do Pastor Eurico, deputado pelo Partido Liberal de Pernambuco, o projeto foi transformado numa proposição de que sejam proibidas as parcerias civis homossexuais (o que já é de saída um contrassenso, a medida que religiosos querem legislar sobre uma relação laica) e de que as famílias homoafetivas deixem de ser assim reconhecidas, anulando decisão já tomada pelo Supremo Tribunal Federal. As reuniões da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família, onde o projeto está sendo debatido, têm se tornado uma manifestação clara do que o que se pretende é cercear a palavra àqueles que falam em nome da comunidade LGBTQIAP+. A truculência com que a bancada bolsonarista, a bancada evangélica e religiosa fundamentalistas, têm tratado as deputadas, notadamente Érica Hilton e Duda Salabert, mulheres transexuais, deixa claro que se trata mais do que interditar as uniões e famílias homoafetivas, trata-se de tentar calar as pessoas que desafiam a condenação ao silêncio dos amores que não devem dizer o seu nome.
A luta política dos homossexuais, das lésbicas, das e dos transexuais e bissexuais é pelo direito a fala, é pelo direito a visibilidade social, cultural, é pela existência como sujeitos de direitos. No projeto político da extrema-direita, na pretensa revolução cultural que pretendem fazer, há a tentativa de fazer calar os homossexuais, de que eles voltem a viver seus desejos e amores no silêncio, no segredo, na clandestinidade, como muitos dos que vociferam, contra a visibilidade gay, vivem seus amores e desejos. Muitos que vivem no armário, que mantêm em silêncio e só para si mesmos aquilo que sentem e desejam, não suportam a felicidade e a liberdade de quem anuncia publicamente seus amores e desejos, quem, como o ex-deputado Jean Willis ou o senador Fabiano Contarato, fazem da tribuna do Parlamento brasileiro lugar de fala em defesa dos direitos e da visibilidade homossexual, bissexual, transexual. Vivemos mais uma tentativa de silenciamento, de retirar dos textos legais as palavras que podem garantir direitos e garantir, inclusive, a proteção da vida dessas pessoas, sempre ameaçadas de violência física, sanguinária, já que violência simbólica sofrem todos os dias, inclusive através das palavras desrespeitosas, agressivas, injuriosas, ignorantes, dos parlamentares que, parecem desconhecer que as palavras Parlamento e parlamentar advém do ato de falar, do uso das palavras para promover o diálogo e a discussão política civilizada, em busca do entendimento e visando dar a voz a quem os parlamentares representam, sendo eles as vozes de quem os elegeu.
O Parlamento não pode ser o lugar de interdição da fala, da proibição de que dadas palavras sejam ditas, não é o lugar de busca para que certas categorias desapareçam.
Acho que esse é um momento muito importante para que se leia e divulgue o romance de Stênio Gardel, porque ele ousa dar a palavra aqueles personagens que, durante muito tempo, foram tidos como inexistentes no espaço rural sertanejo, ele trata de desejos e amores que durante muito tempo foram invisibilisados e silenciados quando se trata do Nordeste. Se o rei do baião cantava que no Ceará não tinha disso não, o livro de Stênio Gardel afirma o contrário. Eu espero que ele não venha a se constituir nas palavras que restam sobre essas experiências desejantes e amorosas vividas por tantos homens e mulheres, por adolescentes, que, por culpa, vergonha, repressão, medo, autopreconceito, autoabjeção, nunca foram capazes de dizer palavra sobre o que viveram ou sobre o que sentiram, sem mesmo terem tido oportunidade ou coragem de viver seus desejos.
A dificuldade que nós historiadores temos em fazer a história dos amores e práticas homoeróticas e homoafetivas advém da falta de testemunhos, do fato de que os homossexuais, as lésbicas, os bissexuais, os transexuais dificilmente deixam memórias, testemunhos, relatos de suas vivências e experiências amorosas e sexuais. Dificilmente, fora do campo literário, os homossexuais têm coragem de registrar por escrito suas vidas e amores. Enquanto os heterossexuais, principalmente, hoje, nas redes sociais, fazem questão de propagandear seus romances e suas aventuras sexuais e afetivas, os homossexuais quando expõem seus amores e prazeres, ainda encontram uma matilha de cães raivosos a querer interditar e proibir que esse amor diga seu nome, fale em voz própria, desafie o mutismo a que se quer condenar aqueles que amam e desejam diferente (e quem não, pelo menos, fantasie com o diferente que atire a primeira pedra). Aos historiadores cabem tomar as palavras que restaram desses amores, no passado, fazendo-as, como faz o belo romance A palavra que resta, chegarem até o presente. É preciso que os escritos dos historiadores sejam como uma carta endereçada aos leitores do presente e do futuro, que elas transmitam através de gerações a palavra daqueles e daquelas que carregaram a cruz, que foram marcados e assinalados por amar e desejar diferente.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.