Cuidar do Nordeste, pensá-lo no feminino

Elas, por sofrerem tantas dores, são mais solidárias com as dores alheia, abertas ao receber e ao hospedar

Legenda: Durante a pandemia, a professora Noadia Novaes foi às localidades de bicicleta ou a pé no município de Itapipoca, para ensinar alunos com deficiência.
Foto: Arquivo Pessoal

O imaginário em torno da ideia de Nordeste, as imagens ligadas a esse recorte regional que, em grande medida, definem a sua identidade, remetem a figuras e práticas identificadas como masculinas. O Nordeste é a região do cabra-macho, onde até as mulheres seriam machos, sim, senhor!

Os personagens ditos regionais, as figuras que compõem o panteão da mitologia regional são todos identificados com o universo do que podemos chamar de hipermasculinidade, da virilidade, da macheza, de um masculino visto e dito como rude, rústico, autoritário, valente, corajoso e que, em nome da honra, não leva desaforo para a casa e, se necessário, a lava com o derramamento de sangue.

O coronel, o cangaceiro o jagunço, o sertanejo seriam a encarnação dessa nordestinidade destemida, cheia de brios e de testosterona, disposta a resolver os conflitos no enfrentamento corpo a corpo, com o uso da peixeira ou ardilosamente recorrendo a tocaia, a pistolagem, ao matador de aluguel, preciso em sua pontaria e homem de palavra na hora do juramento de fazer o serviço como lhe foi encomendado.

Essa mitologia é alimentada por toda a produção cultural da região, pelas mídias tradicionais e alternativas, por pesquisas e produções acadêmicas, nas conversas cotidianas e nas ações mais corriqueiras.

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Essa mitologia não paira no ar ou fica restrita as narrativas e imagens que circulam na dita cultura regional e popular. Ela é internalizada por homens e mulheres da região, ela é formadora de subjetividades, ela é incorporada, encarnada em gestos, ações e falas dos habitantes da região.

O grave é que a circulação desse imaginário induz a ações, estimula comportamentos, baliza estilos e modos de vida, produz sujeitos que serão veículos dessa masculinidade tóxica, desse machismo exacerbado, de atitudes e falas sexistas, misóginas, homofóbicas, transfóbicas.

Esse imaginário é letal para os homens que o reproduz e o vive, mas é, sobretudo, mortal para as mulheres, os homossexuais, os transexuais, para todos aqueles que não se enquadram ou resistem a esses modelos de masculinidades, a essas formas de ser masculino, de ser homem.

Creio que está na hora de pensarmos os femininos no Nordeste e o Nordeste no feminino. Recusar a imagem do feminino masculinizado atribuído às mulheres da região e trazermos para o primeiro plano a contribuição que as mulheres deram para a história e a vida nessa região, em toda a sua diversidade e variedade de formas.

Está na hora da produção artística e cultural, dos meios de comunicação, das pesquisas acadêmicas, se voltarem para esse Nordeste vivenciado pelas suas mulheres, esse Nordeste visto dos diversos pontos de vista dos femininos.

Abandonarmos o Nordeste da violência, do conflito, da competição, das disputas para destacarmos o Nordeste do cuidado, da solidariedade, da maternidade, do afeto, da sororidade, da busca por justiça social, da capacidade de organização comunitária e coletiva.

Não se trata de pensar esses feminino de forma despolitizada, mas aprender com o feminismo como muitos dos aspectos da vida social, que muitos dos valores e atitudes que são cultural e socialmente relacionados ao feminino, são aspectos e elementos centrais na construção de uma nova maneira de pensar e viver a região, devem ser colocados no centro da luta social e valorizados como traços que devem marcar a busca por afirmar outras formas de se relacionar com o outro, com o mundo, com a natureza.

Quando o ex-presidente Lula afirma que veio de sua mãe, dona Lindu, seus valores, sua consciência social, sua honestidade e disposição para enfrentar as situações as mais difíceis, sempre de cabeça erguida, nunca se considerando menor, inferior, incapaz, preservando, sobretudo, sua dignidade, ele está se referindo a um mulher muito semelhante a milhares que existiram e existem no Nordeste: uma mulher analfabeta, uma mulher migrante, que teve que criar sozinha seus filhos, por ter um marido alcoólatra, que a traiu com outra mulher no processo de migração.

Morando num barraco, que era, muitas vezes, invadido pelas enchentes, tendo que trabalhar para dar o sustento a seus filhos, tendo que, muitas vezes, deixar de se alimentar para repartir o pouco que tinha com eles, ela os ensinou o valor da educação, da luta por direitos, de não se dobrar ao poder discricionário de um macho só para ter um marido ou ter alguém que a sustentasse.

Ao invés de mitificarmos Marias Bonitas, Luzias-Homem ou Marias Mouras, porque não trazermos para o imaginário da região a professora que, mal tendo terminado a quarta série do ensino fundamental, caminhava léguas embaixo de uma sombrinha para ensinar na única escola de toda região, alunos e alunas de todas as séries reunidos em uma única sala.

Porque não fazermos da mulher que caminhava léguas com uma lata d’água na cabeça para dar de beber aos seus, da mulher que trabalhava de sol a sol na roça, plantando, limpando mato, colhendo, com seu chapéu de palha, com seu casaco de saco de açúcar, com sua saia de chita, com os pés descalços, para matar a fome da família, símbolos regionais.

Porque não dedicarmos produtos culturais e artísticos as parteiras, que ampararam e botaram no mundo inúmeros filhos e filhas da pobreza, transmitindo oralmente seus ensinamentos e seu saber fazer. Porque não trazermos para os saberes acadêmicos o saber e o sabor das cozinheiras, daquelas que produzem as maravilhosas transformações químicas dos poucos alimentos que se tem em apetitosos pratos.

Mulheres que fazem de seu cotidiano uma expressão de seu amor de mãe, de esposa, de filha, que colocam na fruta que colhem, na planta que cuidam, no bicho que criam, na horta que cultivam, nas flores que plantam, nos jarros que ornamentam, nas roupas que lavam e passam, nas fatiotas que costuram, na bebida que preparam e destilam, nos cafés, licores, chás, mezinhas, lambedores, infusões que elaboram o gesto de cuidado, de nutrição, de proteção, de carinho, de afeto, de ternura, de preocupação com o semelhante.

Mulheres que geram a vida, que a nutrem, que dela cuida, que a enfeita e perfuma, que a tenta fazer menos árdua com seu canto, com sua reza, com sua ladainha, com sua história de Trancoso, com seu terço, com sua promessa, com sua memória, com seu corpo pronto a dar e receber prazer e paixão, com sua dança, com seu perfume, com seu aconchego.

Mulheres que, quando precisam defender os seus, a sua terra, a sua casa, os seus bichos, os seus teréns, os lugares de vida e enterramento de seus ancestrais não titubeiam em entrar na luta social, no enfrentamento do perigo, indo para a linha de frente das manifestações, das passeatas, das greves, dos protestos.

O sindicalismo rural, no Nordeste, a luta pela terra produziu figuras dignas de ser a representação da região: Elizabeth Teixeira, Margarida Maria Alves, Maria da Penha, que deram, em alguns casos, literalmente, a vida, na luta por direitos, no enfrentamento dos machos donos das terras e donos do mundo.

São as mulheres que estão na frente da luta em defesa de uma nova relação com a natureza. Sendo dotadas da dádiva da gestação, da amamentação, da maternidade, as mulheres se sentem muito mais próximas de uma relação cósmica com a terra, com as águas, com as plantas, com os bichos, com a chuva.

Elas estão na dianteira na luta por educação, por saúde, preocupadas com o futuro de seus filhos, da juventude que, sem alternativas, poderão se desencaminhar na vida e as fazer sofrer. São elas que vivenciam de forma mais dramática as crises sociais, o desemprego, a fome, pois são elas que têm que conviver com a dor de não ter um caneco de feijão para botar no fogo.

Elas parem e, por isso mesmo, valorizam os laços de sangue, de hereditariedade, de ancestralidade, a família, a casa, o ter um lugar para existir e habitar, por isso estão na linha de frente na luta por moradia, por saneamento básico, por calçamento das ruas, por segurança, porque não querem ter nos braços um filho ou uma filha morta.

Elas, por sofrerem tantas dores, são mais solidárias com as dores alheia, abertas ao receber e ao hospedar.

Esses Nordestes existem, só não são visibilizados, porque o feminino é visto como menor, como subalterno, como subordinado. Até os intelectuais de esquerda preferem dar visibilidade ao cangaceiro violento, ao cortador de cabeças e não a professora, a médica, a amante, exemplos de cuidado, amor e prazer.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.