Cristãos que desejam e incitam a morte do outro, como entender?

Legenda: André Valadão é líder religioso e alvo de investigação pelo MPF
Foto: Reprodução/Youtube

No dia 3 de julho último, o pastor mineiro André Valadão, em pregação realizada no púlpito da Igreja da Lagoinha, na cidade de Orlando, nos Estados Unidos, intitulada “Teoria da Conspiração”, transmitida ao vivo através das redes sociais, incitou que os cristãos evangélicos matassem pessoas homossexuais e transexuais. Na ocasião ele proferiu frases como: “Agora é hora de tomar as cordas de volta e dizer: Pode parar, reseta!; “já meti esse arco-íris aí. Se eu pudesse, matava tudo e começava de novo. Mas prometi que não posso, agora tá com vocês”; “não entendeu o que eu disse? Agora, tá com vocês! Deus deixou o trabalho sujo para nós”.

O desejo assassino, a vontade de morte, são explícitos. O ódio a população LGBTQIA+ é escancarado. Mas ele não ficou sozinho, os deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e Marco Feliciano (PL-SP) subiram a tribuna da Câmara dos Deputados para defender e apoiar a fala criminosa do pastor mineiro. Lembremos que Marco Feliciano também é um cristão evangélico, pastor da Catedral do Avivamento, igreja neopentecostal ligada a Assembleia de Deus.

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O primeiro aspecto que chama atenção é a imagem de um Deus assassino, que transfere para seus escolhidos a tarefa de realizar o serviço sujo, uma espécie de Deus mafioso ou miliciano. É um Deus que deseja a morte de parte de sua própria criação, que incita a que se mate parte de seus filhos. Um Deus que assistiria agradecido seus filhos escolhidos tornarem-se assassinos e seus filhos bastardos, recusados, abjetos se tornarem vítimas de morticínio. Essa total perversão no imaginário em torno da figura de Deus só é possível porque parte das igrejas evangélicas não compreenderam que ser cristão, que ser seguidor de Jesus Cristo implica romper com a imagem de Deus presente no chamado Antigo Testamento, que se tornou antigo, justamente, porque Cristo veio com ele romper, veio deixar pessoalmente, para quem acredita em sua encarnação humana e na sua vinda a terra, um novo testamento, um novo testemunho de Deus, o que ele próprio chamou de “boa nova”.

Cristo foi torturado e morto, segundo os evangelhos, por pregar uma mensagem que foi considerada perigosa e heréticas pelas autoridades da igreja judaica, seguidores da velha lei, defensores daquela parte da Bíblia, que os cristãos evangélicos vivem recitando, sem saber que tudo aquilo foi ultrapassado pela mensagem de Cristo. Ser cristão é seguir os quatro evangelhos, não repetir passagens, profundamente, em desacordo com a mensagem de Cristo, de livro como o Levítico, que fazem parte da velha lei que ele veio derrogar.

Curiosamente, nessa semana que passou, o Papa Francisco, chefe da Igreja Católica, fez circular nas redes sociais, uma série de vídeos em que aparece sendo entrevistado por pessoas da comunidade LGBTQIA+ e apresentando uma imagem de Deus completamente diferente do Deus guerreiro, do Deus iracundo, do Deus dos exércitos e da guerra, que ia à frente de seu povo esmagar seus vizinhos e conquistar seus territórios, só pelo fato de serem pagãos, que aparece no Velho Testamento.

Ao ser entrevistado por uma pessoa que se definiu como pertencente ao gênero não-binário, ou seja, alguém que não se define nem como homem, nem como mulher, nem como masculino, nem como feminino, mas que se situa numa espécie de zona de indefinição, o Sumo Pontífice nos apresenta uma imagem de Deus completamente diferente: um Deus pai que acolhe todos os seus filhos, independente de suas particularidades e singularidades, e todos nós somos diferentes uns dos outros. Um Deus expressão do amor, que não recusa, nem rejeita nenhuma de suas criações, nenhum de seus rebentos. Um Deus que, generoso, recebe o amor de qualquer uma de suas criaturas, que recepciona todo aquele que Nele tem fé, independente das imperfeições que sua condição humana possa significar, afinal todo ser humano é imperfeito e falível. Como disse Jesus, ao ver a prostituta Maria Madalena ameaçada de apedrejamento: atire a primeira pedra quem dentre vós não tiver pecado.

Muitos pastores midiáticos, como André Valadão, não só se arvoram no direito de atirar a primeira pedra, como convocam os demais a apedrejarem até a morte os corpos homossexuais e transexuais, mostrando claramente que se ouviram algum dia as palavras de Cristo, a quem dizem seguir, nunca as compreenderam. Quando Cristo ensinou que diante de um ultraje, diante de uma bofetada, se deveria oferecer a outra face, não só ele estava ensinando a abominar a violência, como a abominar o espírito de vingança, de ódio contra aquele que pretensamente te ofendeu. Esses pastores, e os seguidores que com eles concordam, nada têm de cristãos, pois não seguem os ensinamentos de Cristo. Se os ditos cristãos se sentem ofendidos pela existência de pessoas que amam e desejam de modo diferente do que a sociedade humana, e não Deus, definiu como sendo o normal, porque não aprendem com a mensagem cristã que a ofensa se responde com o perdão, com a compreensão, e não com a violência sanguinária.

Segundo os textos sagrados do cristianismo, Cristo deixou derramar o seu sangue, deixou se imolar como um cordeiro de Deus, para acabar com todos os sacrifícios sanguinolentos que aconteciam, antes, no templo do Senhor. Cristo se deixou matar para vencer a morte, para fazer a vida vencer, é isso que simboliza sua ressurreição no terceiro dia, no domingo de Páscoa.

Os cristãos midiáticos, que desejam a morte do outro, que pregam a necessidade do derramamento do sangue do outro, de um ser humano, um filho de Deus como ele, não entenderam nada da simbologia da morte de Cristo. Eles continuam cultuando um Deus morto e um Deus da morte, aquele Deus furibundo que pediu a Abraão a vida de seu filho primogênito e que deixou seu filho padecer a morte na cruz.

Não cultuam Jesus Cristo, o Deus vivo e da vida, mas aquele Deus prepotente e vingativo de certos livros que compõem a Bíblia. Eles se julgam no direito de julgar e condenar à morte o seu semelhante, quando Cristo nos ensinou a não julgar o outro e a perdoar a todos aqueles que pretensamente cometeram falhas, pois todo ser humano é falível. Não foi ele que perdoou o ladrão que estava a seu lado na cruz, não foi ele que perdoou o fariseu, o filho rico de um cobrador de impostos corrupto, desde que ele distribuísse a sua fortuna e o seguisse?

Mas, esse é o problema, os pastores midiáticos são fariseus, são sepulcros caiados como os chamou Cristo, porque ao invés de distribuir o que possuem querem é amealhar riquezas, são diletos filhos de uma religiosidade corrompida pelo desejo capitalista de riqueza, acumulação lucro, ostentação. Os homossexuais e os transexuais servem a essas lideranças religiosas como bodes expiatórios, eles servem para projetar, dar popularidade a essas figuras, fazendo com que elas possam faturar milhões de reais. André Valadão perpetrou seu ataque assassino aos homossexuais e transexuais porque sabia que ia ter repercussão, seu nome seria muito mais divulgado e falado, ele alcançaria cobertura de mídia sem pagar um tostão.

Os homossexuais e transexuais servem de pretexto para que pastores com nomes obscuros, denominações religiosas que estão chegando agora no aquecido mercado religioso, onde milhares de fiéis e milhões de reais estão em disputa, ganhem notoriedade. Não importa que com isso estejam condenando centenas de vidas à morte. Essa gente se alimenta de cadáveres, pois amam a morte, pois todo fascista dela se alimenta, a ela deseja. O politicamente incorreto, o politicamente criminoso dá ibope, até porque conta com a conivência das big techs, das empresas que dominam as redes sociais, que também lucram com a disseminação do ódio, com o assédio moral, com a abjeção das vidas que não importam.

Se por causa da pregação desses pastores mais homossexuais, mais lésbicas, mais transexuais sofrerem violências, forem mortos, o que importa, essas vidas não têm valor, deveriam mesmo ser extirpadas, para muitos que constituem uma sociedade estruturalmente homofóbica e transfóbica.

Chama atenção na fala de Valadão sua irritação com a afirmação feita pelo movimento homossexual do orgulho de ser gay. Fica patente que o pastor Valadão, assim como o pastor Feliciano, sentem profundo mal-estar pelo fato dos homossexuais e transexuais estarem saindo do armário, estarem indo as ruas exigirem direitos e reconhecimento público, expondo suas vidas, seus corpos, seus amores à luz do dia, nas ruas das principais cidades do Brasil e do mundo, demonstrando não se envergonharem do que são, de como desejam e de como amam. A fala do pastor em que diz “eu já meti aí esse arco-íris” é bastante ambígua, e freudianamente podemos dizer que faz sintoma.

Se por um lado ela demonstra seu incômodo com a presença da bandeira do arco-íris, símbolo da militância gay, nas praças e ruas, por outro lado o ter metido aí o arco-íris indicia problemas da ordem do desejo vivido pelo próprio autor da fala, que quase deixa escapar a confissão do que não quer confessar. Sem dar necessariamente crédito ou descrédito aqueles que em seguida vieram nas redes dizer que fizeram sexo homossexual com o pastor, no passado, o mesmo que já ocorreu com Marco Feliciano, que pode ser também uma maneira dessas pessoas se promoverem, de aparecerem nas redes, de ganharem notoriedade a partir do mesmo episódio, não se pode deixar de notar que o desejo assassino do pastor é um desejo que se volta para a homossexualidade, para o desejo homoerótico que o habita.

Uma pessoa que tem seu desejo orientado para a heterossexualidade de uma maneira tranquila dificilmente expressa uma homofobia agressiva e sanguinária. Infelizmente a homofobia e a transfobia assassinas, acompanhadas de desejo de morte, de liquidação do outro, costuma vir de pessoas que desejam matar em si mesmos o desejo homoerótico e homoafetivo que sentem. O ódio ao outro nascendo do pânico de identificar em si mesmo esse outro que se recusa. Quando ele diz que se pudesse matava os homossexuais, mas confessa que não pode fazê-lo, na verdade é uma maneira de confessar que já tentou matar a homossexualidade que o habita, mas que não conseguiu.

No fundo podemos ver na fala arrogante do pastor uma espécie de solicitação de autoimolação, que alguém venha e mate nele aquilo que ele não consegue fazer. Seus tormentos, sofrimentos e angústias cessariam se alguém, numa espécie de matança das crianças feita por Herodes, matasse todos os homossexuais e transexuais, acabando assim com a existência daquela forma de desejo que o atormenta, o envergonha, o entristece, o incomoda. Sua irritação com o fato dos homossexuais afirmarem ter orgulho de serem gays nasce do fato de que para ele sua homossexualidade é motivo de vergonha, de autodepreciação.

Como pode que existam pessoas que se sintam tão bem com a maneira com que desejam e amam, embora desejem e amem diferente da maioria, a ponto de saírem a luz do dia e se apresentarem alegres e felizes, o que ele nunca conseguiu ser, por desejar e amar minoritariamente? Daí o desejo de morte e vingança: se eu não posso, que ninguém mais possa. Façam essa caridade a mim, irmãos, já que eu fracassei em fazer em mim mesmo!

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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