Capitalismo à brasileira: sem pagar impostos e sem pagar salários

Foto: Alan Santos/PR

A gritaria dos pastores das igrejas evangélicas contra a decisão da Receita Federal de anular uma decisão eleitoreira tomada por Jair Bolsonaro, dois meses antes da eleição de 2022, que isentava suas prebendas (o que na verdade são os salários que retiram conforme a arrecadação da denominação que comandam) do pagamento de impostos, é apenas um episódio a mais que deixa explícito como o capitalismo no Brasil tem um funcionamento muito particular, que advém da manutenção de traços estruturais da formação social, cultural e territorial de matriz colonial, aristocrática e escravista que os portugueses aqui implementaram. Nossa burguesia, assim como a burguesia portuguesa que por aqui aportou, carrega traços que remetem a uma sociedade estamental, uma sociedade assemelhada à ordem medieval, da qual os portugueses ainda não haviam saído de todo quando iniciaram a colonização das terras brasílicas. Nossa burguesia, assim como a portuguesa, partilha valores que advém de uma ordem social marcada pela distinção, pelo privilégio e pela existência de pretensas hierarquias sociais advindas da própria vontade divina.

Como vimos essa semana, a sociedade brasileira parece, às vezes, ser composta não por classes sociais, que é a forma propriamente moderna e capitalista de divisão social, mas por estamentos e até por castas, que se acham melhores do que o restante da sociedade, que se acham portadoras de direitos exclusivos, de distinções abençoadas pelo próprio Deus. As revoluções burguesas, como a Revolução Gloriosa na Inglaterra e a Revolução Francesa, ocorreram numa aliança entre a burguesia e setores populares, para por fim aos privilégios e distinções de que gozavam a nobreza e o clero, aqueles que pertenciam a aristocracia. O fato do Brasil ter sido o único país da América a ser uma monarquia e ter suas elites agrárias nobilitadas, transformadas em pretensas aristocracias de sangue, em que uma pretensa superioridade social era transmitida através da simples hereditariedade, com essa distinção social estando no próprio nome e no sangue (pretensamente azul), perdura em nossa sociedade, à medida que alguns por nascimento ou por nome ainda se acham distintos e superiores aos demais, devendo gozar de privilégios e prebendas (muito significativo que os pastores utilizem esse conceito para designar o que recebem, já que não querem nomear de salário, porque esse é um conceito tipicamente burguês, capitalista e moderno, que os rebaixaria a condição de assalariados, de trabalhadores, de proletários, que para gente que se acha não só distinta, mas escolhida por Deus, é um acinte), devendo ser tratados de modo diferenciado pela legislação e pelo Estado. A ideia fundadora do Estado burguês pós-revolucionário, da igualdade de todos perante a lei, não parece vigente por aqui.

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Mas não são apenas os pastores evangélicos que parecem desconhecer o conceito moderno, burguês e capitalista de cidadania, em que o cidadão de uma dada nação, de um dado Estado deve estar submetido às mesmas leis que os demais, independentemente de status social, nascimento, concepções religiosas, políticas e morais. Embora o Estado burguês na prática sempre tenha discriminado e hierarquizado a partir de condições econômicas, de cor e de gênero, foi um de seus fundamentos a separação total entre Igreja e Estado, a implantação da laicidade do Estado acabando com os privilégios que eram concedidos ao clero, seja ele católico seja protestante.

Já é uma excrecência que a legislação brasileira isente de impostos os templos e denominações religiosas, mas os pastores não parecem satisfeitos com o fato de que as polpudas somas que algumas igrejas arrecadam a título de dízimo não sejam taxados, sequer declarados à Receita Federal - o que tem facilitado que algumas dessas denominações religiosas tenham se tornado lavanderias para o crime organizado -, mas querem que nem mesmo as suas prebendas, como se estivéssemos em plena Idade Média, não recebam taxação, imposto seria coisa para essa gentinha, o zé povinho de assalariados, a massa não cheirosa (para usar uma classificação social de uma jornalista com cabeça ainda no medievo).

Como podemos ver, a nossa chamada grande imprensa, muitas vezes parece não saber direito se defendem os interesses do capital financeiro, os interesses da metrópole ou se defendem os privilégios de casta de famílias que dominam os meios de comunicação no País, já que, em desacordo com o anonimato do capital, sabemos o sangue e o nome dos proprietários desses meios, que vêm atravessando séculos, reafirmando o princípio aristocrático da sucessão por hereditariedade. As pérolas que os editorias do jornal O Estado de São Paulo (o Ex-tadão) vem nos presenteando, se deve, entre outras coisas - assim como um dia o herdeiro do jornal concorrente Folha de São Paulo teve coragem de dizer -, ao fato de que essa casta não aceita que um Silva, um sem nome e sem sangue, um não fidalgo, um plebeu, seja a maior liderança politica da história do país e venha derrotando seus candidatos e se colocando contra os interesses do baronato nacional e internacional, para efetivamente implantar uma ordem que mereça o nome de moderna, capitalista e burguesa em nosso país.

Foi preciso chegar ao poder alguém vindo da classe operária para que o funcionamento do Estado brasileiro vá na direção de o tornar um Estado moderno e que se rege por princípios básicos da racionalidade burguesa, como o da obrigação de todos pagarem impostos e contribuírem para a manutenção dos serviços públicos, aqueles oferecidos a todos, sem distinções e privilégios. O jornal da família Mesquita faz editoriais contrários ao investimento em empresas nacionais, ele parece um jornal do período colonial a defender os interesses da metrópole, parece não querer que abandonemos a situação de colônia de forma alguma, já que agora quem encarna o colonialismo é o capital financeiro. Todos os jornalões estão contrariados porque embarcaram no projeto de subordinação nacional e destruição de nossas empresas que foi a Lava Jato, da qual o desmonte da Petrobrás foi o objetivo e símbolo máximo, e agora veem o governo Lula retomar os investimentos na indústria do petróleo, em busca de autonomia nacional. É muito curioso uma elite que se diz burguesa e capitalista ser contra investimentos, ser contra a criação de empregos e de renda. Só uma imprensa que não saiu da sociedade escravista e colonial, onde nasceram, pode defender privilégios, como o levante em uníssono em defesa da desoneração da folha de pagamento de dezessete setores da economia que, apesar da desoneração, não criaram um emprego a mais, não investiram em inovação e nem em tecnologia, que apenas aplicaram no mercado financeiro os ganhos adquiridos às custas do Estado e, por extensão, claro, de toda a população do país.

A indignação dos presidentes das duas casas legislativas com a medida provisória que acabava com esse privilégio fiscal, mostra que a classe política do país é, em grande medida, guiada pela lógica da casta. Aqui também os cargos e carreiras passam de pais para filhos, o nome e o sangue definem que filhos e parentes medíocres estejam destinados a vida pública (assim como acontece nas empresas jornalísticas, em que filhos medíocres sucedem os pais). Maridos transferem para as esposas seus mandatos, as mesmas famílias atravessam séculos ocupando cargos no Parlamento e no Executivo, pais e mães ocupam a vaga de suplentes de senadores. Recentemente o governador de Santa Catarina quis nomear o filho como chefe da casa civil, com a anuência de membros do Judiciário, outro poder da República que parece ainda estar parado no tempo dos saquaremas (nome dado aos membros do Partido Conservador durante o Império). No Judiciário, a lógica do sangue e do nome ainda prevalece, gerações se sucedem nos cargos de juiz, desembargador, de membros das cortes superiores. Os filhos de papai são privilegiados desde o ingresso nas universidades de maior prestígio até na hora das seleções e das promoções.

O fato de que um desembargador tenha considerado mais do que legal, moral, que um governador nomeie como secretário seu próprio filho, se deve ao fato que é corriqueiro entre nossos magistrados que se faça o que poderíamos chamar de nomeação cruzada de parentes em seus gabinetes (um magistrado nomeia o parente de um colega em seu gabinete e esse colega retribui nomeando o parente de seu par e ficam todos quites e felizes). O Estado brasileiro não está a serviço da população, que paga os impostos que o sustenta, mas a serviço de dadas castas, inclusive do funcionalismo público, como é o caso de servidores do Judiciário, dos militares e seus parentes recebedores de soldos e dos parlamentares que percebem salários imorais, muito acima do teto, acumulando benefícios, penduricalhos que elevam seus salários artificialmente. O sequestro do orçamento público pelos parlamentares, a invasão de prerrogativas do Executivo, o chamado orçamento secreto, arquitetado por parlamentares como Arthur Lira, que estão mais para senhores de engenho e escravos do que para empresários modernos, é a explicitação de que o Estado não deve ser para todos, mas para poucos, é a institucionalização do assalto aos cofres públicos para fins pessoais (mas tem pretenso analista da grande imprensa que diz que o discurso de Lula criticando as elites, que nunca quiseram educar o povo, já que ao invés de pensarem a educação como um direito, tal como a definiu o mundo moderno, sempre a pensou como privilégio hereditário, daí a gritaria contra as cotas, seria fora de moda, seria uma desculpa para encobrir o que seriam as falhas de seu governo).

Somos uma sociedade presidida pela lógica da pessoa e não do individuo, isto nos traz vantagens, mas também desvantagens quando alguns se acham melhores pessoas que os demais, como os pastores que se acham ungidos pelo Senhor e, por isso, devem não pagar impostos para poderem comprar seus símbolos de distinção (carros de luxo, relógios Rolex ou Patek Philippe, mansões, roupas de grife), coisas de escolhidos pela graça de graça divina. O capitalismo brasileiro é um curioso caso, já que ele deve funcionar sem o pagamento de salários e impostos, de preferência com a volta da escravidão (o Congresso e Supremo Tribunal Federal têm se aliado no desmonte da legislação trabalhista e na precarização do trabalho) e com a volta do quinto, das derramas, das mercês e das graças. A nossa bancada evangélica não se contenta com a graça divina, quer que suas empresas da fé funcionem de graça, sem pagar impostos. Os fiéis devem pagar religiosamente o dízimo, sob pena até do castigo divino, mas eles não devem ter a mesma obrigação quando se trata de suas obrigações como cidadãos pertencentes a um Estado e a uma ordem social que deveria desconhecer distinções e privilégios perante a lei.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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