As Forças Armadas e a cultura do golpismo

Foto: Isac Nóbrega/PR

Assistimos essa semana, perplexos, ao vídeo de uma reunião de governo, realizada no Palácio do Planalto, em julho de 2022, chefiada pelo presidente da República, com a presença da maioria de seus ministros de Estado, inclusive aqueles que possuíam patentes militares, os comandantes das Forças Armadas e o ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), com o objetivo de articular um plano para, se necessário, perpetrar um golpe de Estado no país. Ao invés de reunir seu ministério para abordar problemas do país, elaborar estratégias administrativas, definir políticas públicas, o presidente Jair Bolsonaro resolveu fazer uma reunião para coagir a todos a veicular a narrativa golpista de que as eleições daquele ano seriam fraudadas, de que o resultado já estava previamente definido no interior das urnas eletrônicas, que o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral estariam mancomunados para retirá-lo do poder, para dar a vitória a esquerda. O presidente, exercitando toda a sua paranoia, mandou gravar a reunião, como mais uma forma de pressionar os presentes a se engajaram em seu plano golpista e antidemocrático, ameaçando, claramente, de demissão quem não fosse a publico corroborar e reforçar a narrativa que visava desmoralizar as instituições, fragiliza-las, abrindo caminho para a realização de seu plano de permanência no poder, mesmo tendo clareza do favoritismo da candidatura de Luís Inácio Lula da Silva.

No futuro, os historiadores poderão tomar esse vídeo, essa reunião, como um evento que escancara, que explicita, a existência, no Brasil, do que poderemos nomear de uma cultura do golpismo, da naturalização da intervenção das Forças Armadas na vida política do país. Há, em boa parte da sociedade brasileira – e os acampamentos golpistas em frente aos quarteis deixou isso muito claro -, uma visão naturalizada de que as Forças Armadas são uma espécie de tutor do Estado brasileiro, exerce uma tutela sobre os poderes da República, seria uma espécie de quarto poder que pode ser chamado, que pode ser convocado, sempre que se acha que alguns dos três poderes está exorbitando de suas funções, está se comportando mal, como não se deseja. Em muitas ocasiões, como no recente discurso golpista do senador-general Mourão, os militares se pronunciam no sentido de serem um poder paralelo e acima dos demais, inclusive das leis e da Constituição. Eles se colocam como se fossem intocáveis, como se, ao contrário dos civis, devessem ter privilégios de toda ordem, desde salariais, previdenciários, até jurídicos. Citam o artigo 142 da Constituição não para afirmarem que, segundo esse artigo, devem a ela se submeter, mas, muitas vezes, é como se esse artigo desse aos militares o direito de se sobrepor e golpear a própria lei maior do país.

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Os bolsonaristas não cansam de pedir a intervenção dos militares porque não aceitam que o poder Judiciário puna os crimes que cometem. Eles parecem querer escrever uma Constituição só para eles, eles querem desobedecer às leis e continuarem impunes. Mas não são apenas os bolsonaristas, uma parcela considerável da sociedade brasileira faz uma imagem das Forças Armadas que está muito longe de ser realidade. Como todos os eventos que vimos nos últimos anos demonstram, elas estão longe de ser uma reserva de moralidade do país (o envolvimento de membros das Forças Armadas em episódios de superfaturamento na compra de produtos, em casos de propina, o envolvimento no tráfico internacional de drogas, a participação ativa na tentativa de desvio e venda ilegal de presentes recebidos pela Presidência da República, mostram que, como em toda instituição humana, há o joio e há o trigo). A própria defesa que fazem do período ditatorial e o silêncio incomodado diante das denuncias das torturas e crimes que o regime pós-1964 cometeu, deixa claro que em termos de moralidade e de ética não é das Forças Armadas brasileiras que devemos esperar grandes exemplos.

O que pensar de comandantes militares que assistem a uma reunião claramente subversiva da ordem constitucional e do Estado de direito e se calam (eles que viviam justificando as ações criminosas do regime de 1964 a partir da ideia de subversão da ordem). Naquela reunião estava se cometendo um crime e todos os que não o denunciaram fazem parte dele. Todos ali presentes podem ser acusados, no mínimo, do crime de prevaricação, já que como ministros de Estado e como militares estavam investidos de funções públicas e deixaram de praticar a ação que era devida e obrigatória, diante da perpetração de uma ilegalidade: denuncia-la as autoridades competentes (há um silencio revelador da grande mídia diante da presença, nessa reunião, do queridinho do neoliberalismo Paulo Guedes, que nunca veio a público denunciar o crime). Jair Bolsonaro convocou a todos e todas a praticarem atos ilegais e inconstitucionais e, tirante aqueles que se manifestaram de modo entusiasta na reunião, alguns claramente querendo mostrar serviço para o chefe, como o Ministro da Justiça, Anderson Torres, que mentiu ao dizer que em breve a Polícia Federal teria provas da ligação entre o Partido dos Trabalhadores e o Primeiro Comando da Capital (PCC), mesmo os que permaneceram calados, como os comandantes militares, cometeram crime a medida que se calaram, o que demonstra que, se terminaram por não embarcarem na aventura golpista, não foi porque tivessem efetivamente convicções democráticas.

O golpismo faz parte da cultura das Forças Armadas brasileiras, essa cultura é repassada e ensinada, formal ou informalmente, para cada um que passa a fazer parte de seus quadros. As diversas intervenções golpistas de que participaram ao longo da República (aliás a República é fundada por um golpe militar), sem que nunca tenham sofrido qualquer punição ou represália por isso, sendo beneficiárias, inclusive, de uma absurda lei de anistia que anistiou crimes de tortura, assassinato, desaparecimento de pessoas, alimenta, entre os militares brasileiros, essa cultura do golpismo e a ideia de que estão acima da lei. Somente a certeza da impunidade explica que se mande um militar, um tenente do Exército, o tenente Mauro Cid, gravar uma reunião em que se vai conspirar contra a democracia e o Estado de direito, em que se vai planejar como virar a mesa, como dar um murro na mesa (como diz na reunião o notório general Heleno, que participou da tentativa de um golpe militar contra o presidente-general Geisel e nunca recebeu a menor punição) antes mesmo que a derrota eleitoral acontecesse.

Somente a impunidade, a falta histórica de coragem das instituições democráticas brasileiras de enquadrar os militares dentro das quatro linhas da legalidade (Bolsonaro vivia falando em jogar dentro das quatro linhas mas de um campo que seria ele a demarcar, colocando as linhas onde lhe fosse mais propício, é assim que militares golpistas pensam a relação com a lei e a ordem, se ela não os agrada, se desloca suas fronteiras para outro lugar) explica a desfaçatez de um ministro de Estado, um militar de alta patente, relatar numa reunião ministerial que iria mandar espionar, iria infiltrar agentes da Abin nas campanhas dos adversários do presidente-candidato, para saber o que lá se passava, ainda confessando, candidamente, que o problema era se descobrissem, se “vazasse”. Só a completa sensação de impunidade, de que os militares estão imunes as restrições das leis e da Constituição, pode levar a que documentassem fartamente a trama golpista (de minutas do golpe, passando por minutas de discurso pós-golpe até singelas anotações no “meu querido diário” do general chefe do GSI). A produção de documentos falsos para embasar juridicamente um atentado contra a ordem constituída não é novidade na história de nossas Forças Armadas: o golpe de 1937 teve como pretexto um pretenso plano comunista de assalto ao poder, o famigerado Plano Cohen, que se soube depois, pelos próprios militares, que havia sido uma farsa montada no interior do Exército.

O nível da reunião, desde a retórica do presidente, ex-membro das Forças Armadas, a pontuar toda sua fala com palavrões, passando pelas expressões, pelo palavrão, que o general Braga Neto dedicou ao comandante de sua própria corporação, mostra o nível de formação intelectual e moral que é dada a pessoas que chegam aos mais altos escalões das Forças Armadas. Há um problema grave de formação dos militares brasileiros, desde formação técnica, até formação subjetiva, ética e política.

Na pandemia podemos presenciar um general da ativa, especialista em logística, deixar faltar oxigênio nos hospitais de Manaus e agora o chefe do Batalhão de Operações Psicológicas do Exército, desmaia quando da chegada da Polícia Federal à sua porta (parecem piadas prontas, mas na verdade mostra um despreparo preocupante dos nossos militares). Felizmente, nem mesmo para tramar um golpe de Estado se mostraram muito competentes, pelo menos nesta ocasião. Escudados em um bolorento discurso anticomunista, que não faz mais sentido nos dias de hoje, Bolsonaro e seus asseclas queriam, mais uma vez, colocar o Estado brasileiro a serviço dos interesses e privilégios militares, que parece se pensar como uma casta que não pode ser questionada, julgada, avaliada, controlada como qualquer outro servidor público. Ao contrário, o privilégio de andarem armados, de terem o monopólio da força armada deve implicar restrições como a de não se envolver em atividades políticas, em não tomar partido ou ter partido, enquanto estiverem na ativa.

Bolsonaro, como o baderneiro que sempre foi, começou a politizar e desmoralizar institucionalmente as Forças Armadas, quando fez das instalações militares palanques de sua campanha a presidência. Sua candidatura foi lançada dentro da Academia Militar das Agulhas Negras, chefiada, na época, pelo atual comandante do Exército, Thomás Ribeiro Paiva, que não impediu que essa transgressão as leis acontecesse e continuou as desmoralizando ao colocar militares para exercer funções para as quais não estavam capacitados, quando as utilizou em seu evento de campanha, quando do dia 07 de setembro de 2022. Mas nada disso teria sido possível se as Forças Armadas não comungassem da mesma visão golpista e autoritária do ex-presidente da Republica. Não adianta querer, como muitos fazem, separar as Forças Armadas como instituição das pessoas que as encarnam, uma instituição são as pessoas que em nome dela agem, falam, escrevem, se posicionam. A cultura do golpismo nas Forças Armadas brasileiras é uma questão de cultura institucional, independe das pessoas que lá estejam, em cada momento, as encarnando e representando.

O Brasil não pode perder essa oportunidade de, pela primeira vez, deixar claro que todos são iguais perante as leis e a Constituição, que os militares não têm licença para cometer crimes, ainda mais contra a democracia e o Estado de direito. É preciso que fique claro que o poder militar é que é subordinado ao poder civil, pois instituído pela vontade popular, e não o contrário. É preciso que se faça uma revisão da formação que se dá aos militares brasileiros, seja do ponto de vista técnico, seja do ponto de vista cívico e moral. Não podemos mais condescender com as cenas deprimentes que vimos nesses últimos anos, com militares de altas patentes envolvidos em uma trama golpista visando perpetuar um grupo no poder, a revelia do desejo da população. Temos que por fim, definitivamente, a essa cultura do golpismo, presente tanto na sociedade civil, quanto nas hostes militares. Temos que, punindo quem cometeu crimes, efetivamente fazer o jogo se dar nas quatro linhas, mas aquelas demarcadas para todos, não aquelas que alguns demarcam para si mesmos.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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