Desde antes da campanha eleitoral de 2018, presenciamos grupos de pessoas, de todas as idades e condições sociais, acorrer a portas de aeroportos, de restaurantes, sair as ruas, para gritar, a plenos pulmões, em coro, a palavra mito para designar a pessoa de Jair Bolsonaro. Para além do curioso ou do bizarro que tais cenas podiam parecer, creio que se refletiu muito pouco ou se deu pouca importância aos significados que tais gestos implicavam. Creio que se levou pouco a sério o sentido que tinha esse gesto de se seguir ou se cultuar um mito, no seio da política moderna, no âmbito da política democrática e republicana, aquelas políticas que se pretendem fundar na racionalidade e no exercício da consciência.
Mesmo que aqueles que estavam gritando, mito, mito, tivessem pouca compreensão do significado do que diziam, o que torna ainda mais preocupante tal gesto, creio que, como todo gesto, ele é sintomático, ele é um indício, ele é um sintoma de algo bem mais profundo e significativo. Talvez esteja aí parte da explicação do porque, depois de passado mais de um ano de sua derrota eleitoral, depois que muitas denuncias de irregularidades, não só em seu governo, mas em sua vida privada veio à tona, mesmo depois que ficou claro que esteve por trás, que comandou, mais de uma tentativa de golpe de Estado, inclusive o quebra-quebra de 08 de janeiro de 2023, que, mesmo depois de ter se tornado duas vezes inelegível, ele continue contando com o apoio irrestrito de cerca de um quarto do eleitorado do país, continue tencionando e dividindo o país.
Mas o que é um mito? O mito é uma teoria, uma explicação da realidade, é uma versão dos fatos, é uma revelação discursiva do real. O mito, portanto, pretende enunciar, dizer, uma dada verdade revelada, não construída, pesquisada, experimentada, sobre a realidade, pretensamente ele está de acordo com o real, é sua síntese, sua expressão. A base da verdade mítica é, portanto, uma revelação, quase sempre vinda de um ser para além do humano, um deus, uma entidade, alguém que está acima da vida terrena e comum dos mortais.
A verdade do mito não é construída por um ser humano, terreno, falível, limitado temporal e espacialmente. A verdade do mito não é desse mundo, é uma verdade que foi doada, soprada, dita por alguém que, mesmo que seja terreno, que tenha carnes humanas, teria uma relação privilegiada com o divino, com forças ocultas, com realidades transcendentes, metafísicas, isto é, fora desse mundo de pessoas mortais, de pessoas frágeis em sua vida e falíveis em seus saberes. Um dos elementos que tornam o bolsonarismo de difícil combate, é que ele opera com a lógica religiosa da verdade revelada. Não é mera coincidência que o núcleo duro do bolsonarismo, aquele grupo que demonstra maior fidelidade a seus pressupostos são os religiosos, aqueles que acreditam em verdade revelada, que acreditam em mitos e mitologias (o que não significa que todo religioso seja bolsonarista ou de extrema-direita, mas o pensamento mágico aí operante os predispõem a crendices de todo jaez).
Há quem efetivamente acredita (além de muitos espertalhões que manejam esse discurso para se beneficiar politicamente e defender outros interesses menos confessáveis) que Jair Bolsonaro foi enviado, predestinado, que escapou da morte por que veio cumprir uma missão divina. Ele, nesse sentido, seria mesmo a encarnação de um mito, um mito feito carne, tal como Jesus Cristo. Para quem é cristão, que já opera com o pensamento mítico, acreditar na mitologia bolsonarista, da extrema-direita fascista, que esvazia a prática política de racionalidade e tenta apelar para a passionalidade, para as paixões, para as mitologias, não é muito estranho ou difícil.
Se os pastores se tornaram mediadores fundamentais no bolsonarismo, se muitos deles se beneficiam eleitoralmente dessa condição, é porque o discurso mítico, o discurso que enuncia verdades, pretensamente reveladas por Deus, por Cristo (mesmo que, na boca de Bolsonaro, se torne coisas estapafúrdias como a afirmação de que se Cristo vivesse hoje iria adquirir armas) prevalece no interior desse público. Grande parte de nossa população, para não dizer praticamente todo mundo, está sujeita a aceitar verdades míticas, verdades pretensamente reveladas por alguém considerado inspirado por Deus ou seu representante na terra.
O mito é uma forma de saber, que possui uma racionalidade própria, ele não é irracional, como muitos setores da esquerda tendem a achar, daí porque ele não é incompatível com o exercício moderno da política. Uma política moderna totalmente racional, totalmente afastada das paixões e emoções, totalmente alijada do sentimento religioso e do pensamento místico, é em si mesma um mito, um mito moderno.
Quando os eleitores do inelegível o chamam de mito, dizem mais do que pretendem, o colocam no lugar de um ser sobrenatural, um ser que não é desse mundo, um ser escolhido pelos deuses ou por Deus, cujas palavras devem ser tomadas como verdades reveladas e, portanto, verdades absolutas, verdades que não podem ser contestadas (daí o caráter autoritário e antidemocrático do bolsonarismo), verdades com status de verdades divinas (o Deus acima de todos podia ser confundido com a sua própria encarnação terrena, o mito, que, através do golpe de Estado, se colocaria acima de todos e de tudo, seria em uma só pessoa Deus e a nação, já que o projeto de muitas denominações evangélicas é a destruição do Estado laico e a construção de uma nação cristã, portanto, de um Estado confessional: a nomeação de ministros terrivelmente evangélicos para o Supremo Tribunal Federal faz parte do projeto de um Estado que não se rege pela Constituição mas pelas pretensas leis divinas presentes na Bíblia).
O mito não precisa, necessariamente, ter relação com os dados da realidade, ele sempre ultrapassa os dados do real, vai bem além dele, basta ser internamente coerente, isento de contradições internas, para que seja tomado como verdade. Quantas vezes não ficamos perplexos e até rimos ao nos depararmos com discursos de seguidores do mito que nos parecem completamente delirantes, expondo uma visão muito particular e até excêntrica da realidade, quantas vezes não nos parece que eles vivem em uma realidade paralela.
Mas isso se explica porque o bolsonarismo se alimenta de uma mitologia que é veiculada e reiterada, todos os dias, pelas redes sociais, pela grande máquina de propaganda que a extrema-direita montou, no país, pelas narrativas que parecem coerentes veiculadas pela grande imprensa golpista e neoliberal, com uma grande quantidade de profissionais devotados a imaginar e distribuir mitos, muitos deles em forma de fake news (desde mitos risíveis como o da mamadeira de piroca, da terra plana, dos ETS golpistas, até mitos preocupantes e que têm sérias consequências para a vida das pessoas: os chips chineses de controle inoculados com as vacinas, a imunização que te faz virar jacaré ou contrair Aids, a crise climática como invenção de cientistas comunistas, ou mitos mais desonestos como Bolsonaro é igual a Lula, entre Haddad e Bolsonaro é uma escolha difícil, a indicação de Lewandowski para ser ministro da Justiça é igual a indicação de Moro).
O chamado gabinete do ódio era o alto comando dessa rede de fabricação e distribuição de “verdades” voltadas a construir e reforçar essa imagem mítica de Bolsonaro, que não se sustenta diante da observação minimamente realista. Bolsonaro é um homem frágil física e emocionalmente, uma pessoa profundamente limitada do ponto de vista cognitivo e intelectual (daí seu ódio ao pensamento, a cultura, a ciência, que nasce do ressentimento por se saber medíocre, até como militar ele foi uma nulidade), embora muito perspicaz na encarnação de um certo tipo de bufão ou vilão, que ele percebeu que atraia público e lhe dava audiência, uma espécie de velho malandro carioca na hora de gerir sua vida privada.
O combate ao mito é difícil, justamente, porque ele é uma verdade que não se discute, que não está aberta ao diálogo, ao contraditório, a dialética das ideias e posições. A verdade mítica é autoritária porque ela produz uma convicção pessoal profunda que não se abre para ouvir e aceitar a opinião alheia. Ela é uma espécie de monólogo interior, ela não exige a demonstração, a explicação, ela não exige comprovação só convicção (qualquer semelhança com a forma de pensar de Deltan Dallagnol não é mera coincidência) ela não exige que se convença o outro, que se forme consenso, por isso ela é uma verdade que leva ao conflito e, em extremo, implica a eliminação do oponente, visto sempre como inimigo, aquele que ameaça essa verdade profunda e pessoal que não deve ser contestada (daí o resultado é se metralhar a petralhada, é se matar petistas, é espancar e torturar comunistas, é querer ilegalizar e criminalizar os que pensam diferente).
É como se essa verdade fosse a garantia da existência subjetiva da própria pessoa. Se essa mitologia que ela acredita for contestada e demostrada a sua inverdade, seria como se ocorresse a sua própria morte, daí a disposição de defender seu mito até as custas de matar outras pessoas, de destruí-las física e moralmente. O mito é fundamentalmente uma verdade que nasce do âmbito de uma relação pessoal com uma instância superior que a revela e, portanto, nenhum mortal, nenhuma pessoa na terra é capaz de convencer do contrário.
Quem acredita num mito não ouve ninguém, se faz de surdo, tenta se livrar de quem lhe fala verdades distintas, fazendo ouvido de mercador, se inimizando, se intrigando. Por meio de uma censura interna ou externa tratará de não se deixar afetar, em sua convicção, pelos argumentos alheios.
Tentará suprimir a opinião contrária, a verdade discrepante, primeiro pela desmoralização, pelo ataque moral aquele que a profere (o acosso bolsonarista a todos aqueles que pensam diferentes deles nas redes sociais e que passa, na maioria das vezes, pela tentativa de desmoralização das pessoas, mobilizando todos os preconceitos sociais, acusando de pedofilia, atacando o que seria a homossexualidade e a transexualidade das pessoas, ataques misóginos, racistas, a tentativa de demonizar todos os religiosos que se colocam contra suas leituras da realidade e da divindade), depois pelo banimento das pessoas, seja das redes sociais, seja do próprio país (o que aconteceu com Jean Wyllys e Márcia Tiburi é um exemplo disso) e em último caso pelo assassinato, a destruição física de seu oponente, inclusive lançando mão da tortura como um meio de quem pensa diferente aceitar a mitologia do torturador (imaginem o que teria ocorrido se Bolsonaro tivesse conseguido instalar a ditadura que sonhava, no país, ele ficaria só nas trinta mil mortes que disse ser necessárias para expurgar o comunismo, acabar com a esquerda no país?).
As mortes de Marcelo Arruda, de Pedro Henrique, de Môa do Katendê são resultado daqueles que seguem e cultuam mitos, notadamente, se eles se encarnam em pessoas, se o mito vira carne e anda por aí a se propagar com discursos de violência e extermínio. Todos nós humanos precisamos de mitos para conseguir sobreviver, mas que saibamos escolhê-los e, principalmente, desconfiemos e tomemos cuidado com quem se diz ou aceita ser nomeado de mito (João de Deus é outro exemplo a não ser esquecido). Os mitos não são inofensivos, são perigosos, podem mobilizar o que há de pior nos seres humanos.