Ficar pra titia nunca será ofensa, meu sobrinho é meu melhor amigo

Não cabe frustração, apenas emoção, se o filho da sua irmã é sua companhia preferida, e vice-versa

Foto: Arquivo pessoal

Noah,

antes de você chegar, sonhei contigo. Cê não tinha nome nem risada nem ondinhas no cabelo. As coisas que me diz, ainda não tinha, não falava. Era nuvem dispersa na superfície do meu inconsciente. Mas tudo muito real, sabe? Sentia tua mão, teu cheiro de céu. Percebia o clima e o lugar. Gostava do que via porque você já estava ali. Roçava os pés na grama em minha direção. Um menino vivo. Um garoto delicado e imenso. Amei você como quem ama.

E, no sonho, te abraçava e chamava “meu filho”. Acordei emocionadíssima. Porque, no fim das contas, fui eu que te busquei. Uma semana depois, tua mãe – longe de qualquer tentativa, de qualquer planejamento – anunciava teu surgimento, acredita? Uma semana. Naquela hora, chorei: tive certeza de que era você, o menino do meu sonho, que estava vindo. Pra ser sonho realizado todo dia – agora sim, em nome, risada e ondinhas no cabelo. Presença.

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Cê sabe essa história porque já te contei. É pra você que conto tudo. É meu confidente, meu companheiro. Meu amigo. Tem gente, inclusive, que nem acredita na tua idade. “Mentira que Noah tem 10 anos”. Eu fico toda boba e orgulhosa. Teus 10 anos valem muito mais em algum calendário alternativo, feito por nós dois. Nessa primeira década, cabe maturidade simples, jeito aberto, silêncio sábio e barulho solto. Cabe você e eu. Não consigo te chamar de sobrinho.

É minha pessoa preferida, menino, a companhia perfeita. Tudo que vou fazer gosto de fazer contigo. A gente conhece lugares, come novos pratos, vê coisas que ninguém vê. Arranha um pagode, som de Thiaguinho no cavaquinho. “Olha a chuva caindo lá fora/ E a casa inteira só pra gente/ Será que pode melhorar?/ Que tal um chocolate quente?”. Nossa energia surreal. Quando me chama de “dinda”, então, o universo se reorganiza. Tá barulho lá fora, mas aqui dentro, no nosso espaço, eu tô em paz. Você é e está. Bica no quintal regando as plantas.

Sabe quantas vezes disse “te amo” hoje? E quantas vezes eu ouvi de ti? Eu tinha desejo de ser mãe, de me realizar assim. Mas, quando cê chegou e ocupou, supriu toda a minha vontade. Então olho pra você e digo “não posso ter um filho porque ele não vai ser especial como você, não terá tantas qualidades como você. Tenho medo de não vim uma criatura tão incrível”. Fiquei pra titia. Ofensa nenhuma. É elogio. A titia mais feliz do mundo.

Quero te fazer ainda muitas surpresas pra ver teu sorriso de criança infinita, correndo prum beijo ou um abraço apertado. Ver tuas lágrimas mapeando o rosto porque a emoção do presente foi grande. Cuidar das tuas mãos quando estiverem encaliçadas e dos teus joelhos quando se esconderem em band-aid. Gritar junto, pular junto, esticar essa existência. E continuar te escrevendo bilhetes ditos em silêncio.

Foto: Arquivo pessoal

Outro dia, foi assim: “Você olhou a minha coleção de copinhos de cachaça (que eu nem bebo) e perguntou, 'Dinda, por que você guarda esses copinhos de brigadeiro de aniversário?'. Eu precisava tanto ouvir algo tão puro assim que eu nem consegui parar de sorrir e te corrigir. Eu não te corrigi. Eu corrigi a mim. Agora eu tenho uma coleção de copinhos de brigadeiro de aniversário. O brigadeiro que você sabe que eu amo. Você sabe que eu amo’”.

Na sequência, isso aqui: “A moleca que eu fui seria tua amiga. A gente teria um clube secreto. E uma banda. De dois. Não uma dupla, uma banda. Porque nós dois juntos sempre seríamos mais que dois. No meio das nossas loucuras eu te diria ‘deixa de ser bobo’. Você responderia ‘deixa de ser doida’. E a gente cairia na risada. Exatamente como é hoje. Quando eu era moleca eu já te amava e nem sabia. Que bom que eu não fiquei tão adulta. Eu estava te esperando”.

Nessas gavetas, talvez eu também topasse com os teus bilhetes escritos em silêncio. Achei este:


Dinda, 

se você não existisse, acho que eu não seria tão feliz. Você sabe do que eu gosto, me faz rir. Me faz bem. Eu tenho tantos momentos contigo que não sei ao certo qual é o mais importante, o mais legal. Mas deixa eu pensar… Acho que quando, já faz muito tempo, a gente quase todo dia assistia a filmes juntos. Saíamos pra praia, se divertia quase todo dia. Gosto de lembrar disso.

A gente nunca conversou de viajar pra um lugar específico, por exemplo. A gente nunca planejou nada. Você gosta que as coisas aconteçam naturalmente porque adora fazer surpresa. Sou alvo fácil. Não te peço nada – talvez apenas apresente algumas pistas, rs – e você já vem com tudo. Lembra do álbum da Copa? Fiquei todo choroso quando recebi. Foi demais pro coração. Por que tanto amor?

Foto: Arquivo pessoal

Você me diz que foi criada assim. Que foi feita pra se emocionar. Que a condição financeira dos meus avós não permitia que o material ganhasse tanta importância. Então eu vim e a gente começou a criar nossas riquezas, né? A relação pessoal ficou em destaque, singela e grandiosa. Isso, pra mim, se tornou a coisa mais importante. 

Meu bilhete é curto. Não tenho muito o que falar. Você já sabe tudo. Mas sempre que você diz que me ama, me pergunta o quanto eu te amo. Aí eu sempre digo que é mais do que o planeta, a galáxia, o universo. E aí você diz que me ama muito, que não tem nada maior que alguma coisa muito grande. Aí a gente para. E continua de novo.


Com amor intergaláctico,
Noah

 

Esta é a história de amor da jornalista Michele Boroh e o sobrinho dela, Noah Lima, de 10 anos. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.

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