A prisão de um cidadão italiano pelo FBI no aeroporto JFK poderia ser o episódio inicial de uma trama policial, mas foi mesmo noticiada pelos jornais americanos na quarta-feira passada, dia 5. O crime de que Filippo Bernardini é suspeito tem vocação literária: faz o noticiário se assemelhar a páginas de outro italiano, o escritor e filósofo Umberto Eco, ou do poeta e contista argentino Jorge Luis Borges.
Bernardini roubava livros. Livros ainda não publicados.
Radicado em Londres, 29 anos, era coordenador de direitos autorais do escritório inglês da Simon & Schuster, terceira maior editora dos EUA. Clandestinamente, se correspondia com autores e agentes literários para enganá-los e ter acesso a obras inéditas. Não fazia sob o próprio nome, claro, mas adotando a identidade de pessoas ou funções do mercado.
O artifício incluía o registro de domínios na internet semelhantes ao de casas editoriais de prestígio. Semelhanças tipográficas eram usadas em favor do golpe. Um "m" era trocado, por exemplo, por um "rn", para se beneficiar da miopia ou da leitura descuidado de uma eventual vítima. Cegava as vítimas também o trato apropriado, comum ao meio editorial, o domínio do vocabulário e das abreviaturas partilhadas pela bolha literária, as funções e identidades simuladas.
Margaret Atwood, autora de "O Conto da Aia", foi uma das escritoras a quem tentou-se enganar. Outra investida se deu contra a irlandesa Sally Rooney, autora do livro homônimo que deu origem à série "Normal People",
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Bernardini registrou 160 domínios. Ainda assim, negou as acusações e buscou brechas legais. Ele não poderia ser detido e acusado nos EUA, pois o crime de que era suspeito, se tivesse mesmo ocorrido, teria sido operado a partir da Inglaterra. A investigação avança e Bernardini está, sob vigilância, em algum lugar em Manhattan.
A história carece dos capítulos que desfaçam o mistério. Uma vez roubadas as obras, o suspeito não tentou lucrar com elas, como se poderia esperar, chantageado autores ou vendendo-as em mercado negro de bibliófilos ricos e canalhas.
O que procurava Bernardini? Uma imaginação literária poderia ser tentada a seguir a máxima presente no faroeste "O homem que matou o facínora" (1962), de John Ford. "Quando a lenda se torna realidade, publica-se a lenda", diz o personagem, um do jornalista de ética elástica.
A se preferir a lenda, o crime de Bernardini pode ser entendido com o ator de uma paixão transgressora, o desejo bibliômano, de ter para si todos os livros, levado além dos limites aceitáveis pela sociedade. Pescando manuscritos, o italiano também teria chegado o mais próximo possível do sonho de ser ler livros que não existem, tragicamente perdidos ao longo da história, caso do segundo volume da "Poética", de Aristótles; ou fantasias literárias, como o "Necronomicon", citado por H.P. Lovecraft, ou "Os Segredos da Arte das Trevas", que só existe no universo de Harry Potter.
Inscrito na realidade, o crime poderia ter motivações mais banais. O farsante buscava obter informações antes da concorrência, valiosas para passos e êxitos futuros no meio editorial. Pescar talvez o ajudasse a antecipar ondas boas para as vendas. (Uma nota: a Simon & Schuster não foi implicada no caso).
Reduzido o caso a um artifício para se ganhar dinheiro, o criminoso — seja ele o italiano ou outra pessoa — será, sem qualquer distinção, visto como um detestável ladrão de livros. Terá sido tão somente mais um motor da violência contra os sentimentos e mesmo o amor do leitor a seus livros. Neste caso, ainda pior, violando os próprios autores, às vésperas da publicação, no momento crítico em que muitos ainda duvidam de sua criação.
Na Idade Média, maldições contra o odioso crime eram lançadas pelos monges, então guardiões dos livros na Europa cristã. Em um volume, se lia, "Se roubar este livro/ Você tentar/ É pela garganta que será pendurado no alto/ E os corvos então se reunirão/ Para encontrar seus olhos e arrancá-los".
Talvez o ladrão de inéditos tivesse recuado, se encontrasse em seu caminho a praga que adorna uma das colunas da biblioteca do monastério beneditino de Sant Pere de Rodes, na Catalunha. "Àquele que furtar um livro desta biblioteca,/ Que o livro transforme-se em uma serpente em suas mãos e o domine./ Que o atinja a paralisia, e que seus membros sejam destruídos./ Que definhe de dor, clamando por misericórdia e/ Que sua agonia não encontre um fim até que ele seja despedaçado./ Que as traças consumam suas entranhas em memória da traça que não morreu, e/ que, quando finalmente ele chegar a seu julgamento final,/ as chamas do inferno o consumam para sempre e infinitamente".
Faço minhas as palavras dos monges: que os corsários das minhas estantes tenham destino ainda pior. (Mas se também pequei sobre os livros alheios, que seja poupado da fúria de chagas, cobras e corvos, ainda que não mereça o perdão).