Padrinhos e Madrinhas de nós! Presenças marcantes na Parada pela Diversidade Sexual do Ceará

A 24ª edição do evento fará uma tripla homenagem para travestis pretas do nosso estado

Escrito por
Dediane Souza producaodiario@svm.com.br
Legenda: Parada pela Diversidade Sexual do Ceará deste ano ocorre dia 29 de junho
Foto: Divulgação
Escrevo a coluna desta semana na companhia de Tel Cândido,  assistente social, eventólogo e ativista LGBTI+, como um abraço coletivo às nossas madrinhas.
 
Há 26 anos a primeira Parada pela Diversidade Sexual do Ceará saiu às ruas de Fortaleza, percorrendo o trajeto entre o antigo Hotel Esplanada e a Barraca do Joca. Naquela época, pouquíssimas pessoas que residiam na cidade ousaram se juntar à marcha, por medo ou vergonha de serem reconhecidas, de forma que o grupo de aproximadamente 200 manifestantes foi composto, majoritariamente, por participantes de outros estados, reunidos por ocasião de um encontro nacional.
 

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As lideranças do que hoje chamamos de Movimento LGBTI+ tinham alí um grande desafio: driblar o estigma social e engajar a comunidade local, inserindo as suas pautas no debate público. Foi aí que surgiu a figura da Madrinha da Parada.
 
Aqui no Ceará, o posto de Madrinha da Parada foi inaugurado pela cantora Lúcia Menezes, no ano de 2001. Dali em diante, uma sucessão de artistas, apresentadoras de TV, intelectuais acadêmicas e até uma primeira-dama se revezaram na passagem da faixa. Por muito tempo, com as exceções de Lena Oxa, Luma Nogueira de Andrade e Dediane Souza, essas figuras não tinham necessariamente um pertencimento identitário à população LGBTI+.
 
As madrinhas eram, geralmente, mulheres cisgênero heterossexuais que integravam uma estratégia do movimento social para ampliar a sua visibilidade na imprensa e fortalecer as suas relações com outros setores da sociedade, mas isso vem mudando aos poucos.
 
Nos últimos anos, vimos três pessoas travestis ocupando o cargo de Madrinha da Parada pela Diversidade Sexual do Ceará e um novo marco está para acontecer no próximo 29 de junho, quando a 24ª edição do evento fará uma tripla homenagem para travestis pretas do nosso estado.
 
Como adiantamos na coluna anterior, a primeira homenageada é Thina Rodrigues, ativista que emprestará postumamente a frase “Quem chora por nós?” ao tema de 2025, fomentando o debate sobre a violência e o direito de envelhecer com dignidade na população LGBTI+.
 
Thina Rodrigues, mulher negra com turbante vermelho e colares coloridos olha para a câmera com expressão serena
Legenda: Thina Rodrigues, ativista que emprestará postumamente a frase “Quem chora por nós?” ao tema de 2025, fomentando o debate sobre a violência e o direito de envelhecer com dignidade na população LGBTI+.
Foto: Divulgação
 
Pela primeira vez na história, o título de Madrinha da Parada pela Diversidade Sexual do Ceará será compartilhado entre duas pessoas, Viviane Venâncio Matias e Labelle Rainbow. Viviane de Oya, como também é conhecida, é negra de axé e tem 50 anos de idade, mais de trinta deles dedicados ao ativismo por direitos humanos para travestis e transexuais.
 
Viviane de Oya, mulher negra com turbante vermelho, colares coloridos e roupas tradicionais posa em frente a fundo branco
Legenda: Viviane de Oya, como também é conhecida, é negra de axé e tem 50 anos de idade, mais de trinta deles dedicados ao ativismo por direitos humanos para travestis e transexuais
Foto: Divulgação
 
É bastante conhecida entre as comunidades mais vulnerabilizadas, especialmente pela sua atuação como educadora popular em saúde sexual, desenvolvendo ações entre profissionais do sexo e povos de terreiro. Viviane também já integrou a equipe do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, onde acolheu com empatia centenas de vítimas de violência LGBTI+fóbicas.
 
Já Labelle teve sua trajetória marcada pela participação em projetos sociais de juventude, se tornando gradualmente uma presença marcante nos debates sobre cidadania para pessoas trans e travestis no Ceará. Filha do Grande Bom Jardim, construiu um ativismo plural, atuando em frentes que vão da formação política à difusão da cultura LGBTI+, como fez através do Festival ForRainbow, acumulando ainda experiência como gestora de políticas pró-diversidade e assessora parlamentar.
 
Labelle Rainbow, com cabelo crespo solto, brincos grandes e roupas coloridas fala ao microfone em ambiente iluminado.
Legenda: Labelle Rainbow, do Grande Bom Jardim, teve sua trajetória marcada pela participação em projetos sociais de juventude, se tornando gradualmente uma presença marcante nos debates sobre cidadania para pessoas trans e travestis no Ceará
Foto: Divulgação
 
Apresentadas as homenageadas, façamos aqui uma reflexão importante sobre a relação das Paradas com as populações trans. Cabe citar, primeiramente, que a interface desses sujeitos com o espaço público é marcada pela violência. Travestis foram alvo preferencial da repressão militar durante as décadas de 1960 e 1970 e, apesar da sua crescente organização política a partir dos anos 1990, a transfobia e a Travestifobia seguiu estruturando as relações sociais no país, fora e dentro do movimento LGBTI+.
 
Mesmo participando ativamente da sua proposição e emprestando os seus rostos às primeiras manifestações públicas massivas por direitos para LGBTI+ no país e no Ceará, não faz muito tempo que a presença trans e travestis nas Paradas era vista popularmente como um fator de desqualificação política desses eventos. Corpos trans e travestis também foram ali, muitas vezes, vigiados e disciplinados para corresponder às expectativas hegemônicas sobre o que é fazer política nas ruas.
 
Indiscutivelmente, nossas primeiras madrinhas - artistas e acadêmicas - cumpriram uma importante missão, emprestando o seu prestígio em tempos sombrios e de raros aliados, mas é precioso que se esteja avançando nessa questão, reconhecendo também aquelas pessoas cuja luta cotidiana pela sobrevivência se assemelha à experiência de tantas outras que ocupam e constroem essa Parada do chão.
 
Dito isso, estamos diante de uma mudança de paradigma quando um dos maiores eventos LGBTI+ do Brasil confere o lugar de destaque para três travestis negras, cujo reconhecimento público não advém das suas relações com a mídia ou da ocupação de espaços de poder que sequer lhes foram oportunizados.
 
 A sacada do GRAB em ressignificar os termos do ser Madrinha, aparentemente na contramão de outros eventos desta natureza, reflete um amadurecimento do movimento social local, dando um passo instigante no sentido da reparação histórica e interna às travestis cearenses, sem as quais, diga-se a verdade, sequer haveria a Parada pela Diversidade Sexual ou visibilidade coletiva LGBTI+ como a conhecemos hoje. 
 
O que se espera de tudo disso, no final, é que Thina, Vivi e Labelle ecoem para além da Avenida e sirvam como um farol para outras travestis pretas que sonham com uma existência possível, feliz e longeva. Bem-vindo seja então esse olhar para dentro, para as fortalezas de uma população rica em força e inventividade, sem pedir o microfone ou a bênção para outro.
Gratidão às madrinhas (a todas elas) e parabéns ao Grupo de Resistência Asa Branca – GRAB por remar contra a maré.
 
Saudemos e reverenciemos a nós, que sempre fomos padrinhos e madrinhas nós mesmos/as!
 
Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.