O céu dos nossos olhos
Em meio à quarentena que já ultrapassou os 40 dias, os sentimentos não são leves, então, meu coração cria asas.
Quando eu era criança, uma das minhas maiores diversões era esperar os relâmpagos em dias de chuva, e contar os trovões que se faziam após cada clarão a céu aberto. Eu nunca soube verbalizar o tamanho da satisfação. O que eram claridades de medo para a vizinhança, pra mim, sempre foi suspiro poético da natureza. Naquele tempo, eu pensava: “Isso tudo é pra mim! Já que, por aqui, todo mundo só sente medo”. Hoje, em meio ao isolamento social que vivenciamos, à quarentena que já ultrapassou os 40 dias, os sentimentos não são leves, então, me vejo sob aquele céu de outrora. E meu coração cria asas.
Nesses tempos de tantos talvez, durmo e acordo de janela escancarada, saciando meu tempo com mil e uma descobertas, mil e um devaneios e delírios do que tenho visto, sentido; que me fizeram ser quem já fui, e quem tenho sido. Quero enxergar muito além do que veem meus olhos. Sempre. Então, como antes, parece que encontrei mais tempo na vida. Olho pro céu e finalmente admiro suas delícias. Ele está diferente. Parece mais saudável ainda. Absolutamente inspirador. Talvez tenha cruzado uns infinitos para se curar e nos emanar as boas energias, essas que a gente sente quando o aprecia, sem pressa. Talvez um recado pra natureza humana.
De fato, vejo, cheiro. Sinto: o céu está mudado. Como uma espécie de abrigo, agora resplandece ainda mais entre os silêncios descabidos que, diante da quarentena, viraram rotina. O silêncio das 6h da manhã, na saída do condomínio; do meio-dia, nas calçadas da escola; do bar da esquina, da bodega do pão quentinho. Do telefone que cessou a bateria de tanto se fazer presente. Da avenida desocupada, sem gente, sem trânsito - estão faltando vidas nesses meios de caminho, eu sei, a gente sente.
Os dias vão e vêm, e me volto pro céu. Olhares soltos e outros guardados em imagens fotografadas. Por incrível que pareça, o céu está mais livre. Mais aberto. Mais apto aos nossos olhares, às nossas esperas. Muda de cor agora mais lento, nos aponta o seu azul, ainda mais intenso. Numa claridade que nos abre os olhos. Nos corta a vista. Nos paralisa por completo porque irrompe feito o pincel diário dos nossos horizontes. É um verdadeiro céu de malabares. Com nuvens frouxas, libertas. Aproveita-se das nossas carências e se faz ainda mais vivo, todo pra nós. Nos sacia por muitos momentos. Mas ainda estamos incompletos.
Dia a dia, esse céu dá seu show. Algumas vezes nos banha, alimenta o chão dos nossos pés ora descansados, ora exaustos de tanto carregar sobre o si a montanha de sentimentos que somos nós, muitas vezes surpreendidos pelo silêncio cortante das nossa esperas, que não têm data para acabar. Feito nosso coração, que dia após dia avança para combater as sensações que não nos convém alimentar. Sentir é natureza. Cultivar é opção (?)
Seguimos. Sob o nosso “telhado do mundo inteiro”, como disse em canção o ‘Teatro Mágico’. Nesses dias e noites de travessia do tempo, vi um céu de expressões infinitas. Parecia querer presentear aos nossos olhos o que esperam nossos braços, corações apertados. Então, estrelas saltaram estonteantes como se, ao mesmo tempo, dançassem e tocassem a canção dos nossos dias. Acendiam suas luzes como se enfeitassem nossos abrigos. Até parece que, no esforço de nos permitirem brilhar, não economizaram energia, nos fazendo enxergar, todos os dias e noites, o céu dos nossos próprios olhos.