Quando a vida levou a artista tradicional de circo a fincar raízes numa única cidade, ela passou a guardar recortes e memórias da vida itinerante para seguir conectada às lonas
Ela já fechou os olhos para este mundo, mas não sem antes espalhar a memória do circo no Ceará pelos móveis e cômodos de sua casa. Havia pedaços dela nas estantes, nos armários e até na mesinha que acomoda a televisão – toda uma vida partida pela distância que o destino impôs entre a mulher de riso frouxo e o mundo encantado das lonas.
Uiara Santana precisou deixar o circo várias vezes ao logo da vida. Primeiro para estudar e formar-se técnica de enfermagem, depois para se aposentar e cuidar da mãe doente. Sem aceitar a lonjura instalada entre a vida na casa de tijolo e a itinerância circense, ela usava a memória como catalisador capaz de transportá-la novamente ao circo.
E assim foi guardando, quase obsessivamente, fotografias da família, livros, catálogos, recortes de jornais e até orações adaptadas à realidade circense. Ainda que partida, Uiara renunciou à resignação e se empenhou em encontrar maneiras de juntar os pedaços de si. “A minha história é esta: a de viver dentro do circo, mesmo fora dele”, ela me disse há oito anos, enquanto mergulhava nas memórias da família que peço licença para contar agora.
Integrante da terceira geração do clã dos Santana, Uiara nasceu quando o circo da mãe, Zoalinde, fazia praça em Vitória de Santo Antão, uma cidadezinha perto do Recife (PE). Desde muito cedo, ela começou a trabalhar no picadeiro. Fazia arame e contorção, mas seus olhos brilhavam mesmo quando participava das inúmeras peças de teatro que a mãe adaptava para a segunda parte do espetáculo.
O prazer era tanto que Uiara mal conseguia discernir entre o que era trabalho e o que era diversão. Aos oito anos, ganhou o papel de anjo na história sobre a Paixão de Cristo adaptada pela mãe. “Um anjo negro!”, contava às gargalhadas, antes de dar conta dos vários cochilos que tirava em cima de uma mala acomodada por trás das cortinas. “Na hora da entrada, aí eu vinha de anjo com a asa torta, e mamãe corria pra ajeitar meus cabelos.”
Quando Uiara e o irmão chegaram à adolescência, Zoalinde achou que era hora de fixar o circo em Fortaleza. “Fui estudar no colégio Capistrano de Abreu, toda patricinha. Só ia pro circo na hora do espetáculo”, me contou Uiara.
Mesmo com o conforto de uma casa de tijolo, a menina não se afastava do circo. Foi ele, afinal, que a mostrou a dureza da vida. Ali, o pai morreu pelo vício no álcool, a mãe ensinou que é preciso falar firme para construir respeito, o avô materno faleceu de choque.
Ali, Uiara apaixonou-se por um palhaço, teve quatro filhos e, embora nenhum deles siga circense, a arte se fez tradição da família. É o circo, afinal de contas, que a ajudou a definir a própria identidade. “A vida de circo é assim: você sofre, mas ama”, dizia.
Mesmo quando a mãe vendeu o Circo-teatro Uiara porque não encontrava mais artistas o suficiente para levar os espetáculos, Uiara impôs para si a função de guardar a memória circense. Foi defensora assídua da tradição do circo familiar e do teatro, admiradora parcial daqueles que, como os seus, se arriscam no picadeiro para fazer, da arte, a comida do dia seguinte.