Por que é difícil viver em paz consigo mesmo?

Ela é um caminho possível que podemos trilhar, passo a passo, com coragem e consciência

Legenda: A criança absorve as vivências do ambiente familiar, que passam a ser um arcabouço estruturante de sua personalidade
Foto: José Leomar

Viver em paz consigo mesmo é um dos desafios mais complexos e profundos que enfrentamos. A dificuldade de atingir essa paz frequentemente está relacionada ao legado transgeracional que possuímos, composto por memórias, traumas e conflitos herdados de nossos ancestrais. Ao olharmos para dentro, percebemos que nossa identidade não se limita às nossas experiências pessoais, mas também à grande variedade de histórias que remontam a gerações anteriores.

Esses elementos estão inseridos em nossa história de vida como uma segunda pele, um código transgeracional, muitas vezes herdados do ambiente psíquico-familiar. A criança absorve as vivências do ambiente familiar, que passam a ser um arcabouço estruturante de sua personalidade. Por sua generosidade, a criança introjeta o meio, traz para si as dificuldades da família e amortece as emoções negativas dos pais ou responsáveis para proteger as pessoas que ama e manter o equilíbrio do grupo familiar.

A primeira compreensão que devemos ter é sobre a pluralidade que habita em nós. Cada um de nós, na sua essência, é uma multiplicidade de vozes e experiências. Não somos apenas herdeiros de características físicas, tais como a cor da pele ou a forma dos olhos, mas também de padrões emocionais e comportamentais que, muitas vezes, não escolhemos.

Quem de nós nunca ouviu: "filho de gato, gatinho é, filho de peixe, peixinho é"? Isso nos faz questionar sobre nossa verdadeira identidade? Somos apenas um eco das vozes que nos antecederam, ou conseguimos ser uma voz genuína e verdadeira em nossa própria história? Ser um indivíduo ativo e não um indivíduo passivo repetindo o que ouviu, assim como os papagaios fazem.

Para ter uma vida tranquila, é imprescindível reconhecer e aceitar as heranças que recebemos. Isso requer uma análise minuciosa das batalhas que nossos ancestrais enfrentaram, dos sacrifícios que fizeram e das dificuldades que superaram.

Cada uma dessas vivências influenciou de alguma maneira nossa própria existência. Se um avô foi vítima de violência ou injustiça, suas experiências de medo e sobrevivência podem se manifestar nos nossos medos e ansiedades. Aceitar que somos uma multidão como peças de um quebra-cabeças é um passo importante. Esta aceitação nos permite compreender que os conflitos internos que enfrentamos são, na maioria das vezes, reflexos de lealdades familiares e padrões herdados.

Aqueles padrões emocionais, uma vez absorvidos, podem acompanhá-la por toda vida, gerando comportamentos repetitivos e até obsessivos. Apesar de bem-intencionada, essa proteção pode criar padrões emocionais que se perpetuam e tornam-se obstáculos na nossa vida adulta e nos nossos descendentes. Para alcançar a paz interior, é preciso explorar com coragem as razões emocionais profundas que nos perturbam.

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Ao nos aprofundarmos em nossa história pessoal e familiar, podemos começar a identificar os padrões que nos bloqueiam. A constelação familiar tem sido uma ferramenta útil para a compreensão desta trama inconsciente que nos envolve. Essa compreensão é libertadora, nos dá a oportunidade de intervir em nosso próprio processo de vida. Ao ressignificar nossas experiências, podemos aprender com elas, em vez de sermos aprisionados por elas.

Para mudar, é preciso coragem. É preciso olhar no espelho e encarar os momentos mais difíceis da nossa existência, sem culpar ou condenar nossos avós, mas sim com respeito e gratidão pelo legado positivo que nos deixou. A tarefa de autoconhecimento pode parecer dolorosa, mas é indispensável para iniciarmos uma nova etapa da vida. Ao superarmos as limitações impostas, abrimos espaço para novas perspectivas e para um futuro mais equilibrado.

Cada um de nós tem a capacidade de escolher sua própria trajetória de vida. Essa escolha deve considerar o que herdamos, mas também considerar as nossas próprias experiências e aprendizados.  Ao reconhecermos o que nos foi transmitido, temos a oportunidade de modificar, acrescentar e transformar nossa história e comportamento, buscando um equilíbrio que nos permita viver em paz.

A pergunta mais importante é: O que impede a minha felicidade? Muitas vezes, a resposta pode ser uma lealdade negativa a um antepassado ou padrões emocionais que nos prendem a uma história que não é mais nossa. O que preciso consertar, modificar, acrescentar? Por outro lado, quanto amor, força, alegria, encorajamento nossos antepassados nos deixaram?

Ao tomar consciência desses bloqueios, podemos decidir se queremos continuar a perpetuá-los ou se queremos quebrar esses ciclos de sofrimento e dar início a um ciclo de felicidade e prosperidade. Toda cura, nesse sentido, é cósmica.

Quando eu me curo, eu me liberto, curo e liberto o antepassado e curo e liberto meus descendentes. Ponho fim a um padrão limitante de comportamento.

Em um de nossos cursos regulares: como romper com a repetição de comportamentos negativos, um jovem filho de pescadores relatou sua frustração ao não aproveitar as oportunidades que a vida lhe oferecia. Conseguiu um emprego em um banco particular, mas, quando estava bem financeiramente, não se sentia bem, se sentia infeliz e abandonou o emprego, apesar de ter consciência de que esse emprego mudou sua vida financeira e seria difícil encontrar outro equivalente.

Ao deixar este emprego, conseguiu guardar uma reserva que foi destruída por um acidente de um dos seus carros. Posteriormente, conseguiu assumir a administração de um hotel e, quando tudo parecia bem, acabou desistindo do emprego por causa do mesmo sentimento de mal-estar e crises de ansiedade. Quando questionado sobre a origem da crença de que o dinheiro só traz infelicidade, respondeu que seu avô ganhou na loteria e abandonou a profissão de pescador, gastando o dinheiro em farra e bebida alcoólica.

Quando criança, ouvia constantemente de sua avó que  o dinheiro só traz desgraça. Que o dinheiro desgraçou a vida do marido e de toda a família. Esse jovem percebeu que estava comprometendo seu futuro devido a uma lealdade negativa ao seu avô. Com a consciência de estar agindo dessa forma, era para não querer repetir o comportamento do seu avô. Ele poderia romper com essa crença e fazer o que seu avô não pode fazer.

Como um jovem sensível e responsável, inconscientemente, preferia deixar de ganhar dinheiro para não causar danos à sua família. Sensibilidade que faltou ao seu avô.  Agora ele podia romper com essa crença e demostrar que o dinheiro bem aplicado pode ser uma fonte de prazer e felicidade para todos. O erro cometido pelo seu avô poderia se transformar em uma lição de vida.

Viver em paz consigo mesmo é um constante processo de autoconhecimento e transformação. Ao reconhecer nossa pluralidade e reconhecer as influências de nossa história, podemos nos libertar de padrões que não nos servem mais. Eu sou um indivíduo interconectado com a história de meus antepassados. Meus bloqueios permanecem os mesmos e, se eu não conseguir me libertar, cabe aos meus descendentes fazê-lo.

Essa tarefa não é simples, mas é extremamente benéfica. Ao escolhermos de forma consciente nossa trajetória, não somente transformamos nossas vidas, como também honramos a história dos nossos antepassados, permitindo que sua força e amor se manifestem em nós de forma positiva. A paz interior é possível e é um caminho que podemos trilhar, passo a passo, com coragem e consciência.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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