Matéria prima de arte é gente

Quando materiais inusitados viram arte-prenúncio de um tempo melhor, os olhos contemplam as transformações que o elemento humano é capaz de gerar. A saudade da presença segue abraçada pela beleza do que reside no música e no cinema

Ando, como canta Adriana Calcanhotto, vendo tudo enquadrado. Pela janela do quarto, pela janela do carro e, principalmente, pela tela. Não é exclusividade minha, bem sei. A vista para o virtual é o que resta a tantos de nós, parcial ou totalmente isolados da vida como a conhecíamos. 

Neste contexto, tal como acontece com quem nos é caro, o contato com a arte acaba se dando, em grande parte das vezes, ali, dentro de casa, na palma da mão. E foi assim, a partir de uma conversa cotidiana no WhatsApp, que me chegou seguinte vídeo:

Assistir a ele foi o suficiente para que eu teimasse em cascaviar sobre esta história que tanto me chamara a atenção. “Como assim essas pessoas fizeram do lixo instrumento clássico? E como pode o som ser tão límpido?”, pensei. Numa pesquisa rápida, descobri que o filme do qual se fala neste vídeo feito para viralizar, já havia sido produzido.

Claro que fui procurá-lo para entender melhor a história de jovens de Cateura que tiram som de violinos, violoncelos e outros dispositivos feitos a partir de latas de óleo, embalagens de tinta, radiografias e peças de madeira jogadas no lixo. Isso só pra começar.

A obra, que está disponível no Vimeo para aluguel ou compra, exige ser assistida. Vista de maneira despretensiosa, “Landfill harmonic - Uma Sinfonia do Espírito Humano”, de 2015, foi o retorno a um gênero audiovisual pelo qual sempre fui apaixonada: o documentário. Foi uma revisita e tanto, com direito a emoção, contemplação e reflexão. 

No filme, alguns membros da orquestra, que moram numa comunidade bem próxima a um lixão, no Paraguai, compartilham parte de suas histórias, conduzidas musicalmente pelo professor Fávio Chávez. Destaque para Nicolas Gomez, que é morador da região e, com muita dedicação, fabricou os primeiros instrumentos, tornando possível o andamento do projeto.

Assistindo, é possível acompanhar desde a ascensão, que levou a orquestra a apresentar-se em diferentes partes do mundo, à dificuldade vivida pelos integrantes da Landfill Harmonic Orchestra por morar em uma região com pouquíssima salubridade.

Ao mesmo tempo em que a música se apresenta como uma alternativa àquela realidade, fica nítido na película que, para que sejam dadas condições de dignidade e inteireza às vidas de quem é, de alguma forma, tocado pela existência da orquestra, é necessário um conjunto de ações complexas. É interessante acompanhar a forma como esses fatores são pincelados.

Como ressalva ao documentário, trago a informação de que as legendas disponíveis são apenas em inglês e espanhol. Esta última é a língua nativa do filme. 

Mais perto de nós

Em dado momento (alerta de spoiler, que não é tão spoiler assim porque se trata do que aconteceu há 8 anos), é possível acompanhar os passos do grupo paraguaio em solo brasileiro. Os takes mostram a ida da orquestra à cidade maravilhosa para a conferência Rio +20, em 2012. 

Já dentro da realidade ali exposta, tendo como cenário meu país, foi impossível não relacionar o que via à outra obra cinematográfica, marcante e necessária, que também trata da vida no lixão do ponto de vista documental. “Boca de lixo”, do inesquecível e incomparável cineasta brasileiro Eduardo Coutinho, é uma genial produção que foi filmada bem perto de onde as meninas e meninos de Cateura estiveram ao visitar o Brasil: no lixão de Itaoca, no município de São Gonçalo, a 40 quilômetros do Rio de Janeiro.

O encontro e os diálogos nele nascidos são os protagonistas do documentário de Coutinho. As entrevistas por ele feitas parecem conversas possíveis, assim como a fotografia e o som são pensados sob uma ótica de naturalidade, moderníssima no ano de 1993, em que o filme foi lançado, e ainda hoje, se pensarmos que tantos documentários reproduzem a estética britânica, tão próxima do que conhecemos como telejornalismo, até os dias atuais. 

Em “Boca de Lixo”, o espectador mergulha no universo íntimo das catadoras e catadores, tendo a chance, dadas as escolhas do diretor, de acreditar no delírio de que há espaço para a vulnerabilidade e para o imprevisível mesmo em uma obra fechada como essa.

Por isso e por tanto mais é que a lembrança desse filme - que (atenção!) está disponível no YouTube, ainda que em baixa qualidade - roubou a cena à medida que eu ia imergindo no mundo daqueles outros habitantes do entorno do lixo, lá em Cateura.

Ainda mais perto

O mesmo aconteceu com as recordações acerca do Grupo Uirapuru, a Orquestra de Barro (de Cascavel, no Ceará), mas por motivo distinto. Diversas memórias tocantes ao grupo cearense me vinham à mente sempre que me lembrava dos meninos e meninas paraguaios, nestes últimos dias.

O motivo é óbvio. Assim como aqueles, os músicos amadores de Cascavel fazem brotar o som de onde não se imagina. Conheci-os em pauta, faz coisa de um ano. À época, anunciavam apresentação que aconteceria no Teatro São José, em Fortaleza. O resultado de uma viagem deliciosa ao mundo em que o barro é casa do som compartilhei aqui, no Diário do Nordeste.

ORQUESTRA DE BARRO
Legenda: Registro feito durante a concretização da pauta em que conheci o Grupo Uirapuru, a Orquestra de Barro
Foto: Helene Santos

Apesar de envolvente, o trabalho jornalístico propiciou contato suficiente com os meninos da cerâmica moldada pelas apaixonadas mãos de Tércio Araripe, músico e criador da orquestra. Faltou-me a condição de plateia, queria vê-los no palco. Num tempo em que os encontros se materializavam logo ali, dois ou três dias depois de combinados, tive o prazer de assistir, de dentro de um São José com cara de reformado, a um verdadeiro espetáculo.

As cores, os figurinos levemente psicodélicos e os sons da natureza feita música me conquistaram para sempre. Citava, inclusive, em conversa recente, que essa foi uma das vezes em que experimentei o transcendental num espetáculo de música. Inesquecível.

Por enquanto, a música segue submissa ao botão de play e sensações como as que vivi no dia 14 de junho do ano passado podem nem tão cedo voltar a acontecer. Assim como o cinema, as artes visuais e mesmo a literatura, para quem tem o hábito dos e-books, os sons, por ora, estão enquadrados nas telas. Das janelas que me cabem, sigo o rastro. Sem eles é que não dá pra ficar e eu nem quero chegar antes.