Vida longa, José

Falar dos 110 anos de existência do Theatro José de Alencar é celebrar a beleza no meio do caos. Assim define a jornalista e atriz Ana Beatriz Farias nesta terceira crônica da série em comemoração ao aniversário deste ícone cearense. Até domingo (21), confira diariamente um novo texto no site do Diário do Nordeste

Escrevo imersa em um mar de afetos. Nos vitrais coloridos da memória, esse senhor mais que centenário tem lugar cativo, ocupa espaço imaculado - ou algo bem perto disso. Assim como está erguido, deslumbrante e absoluto, em meio à natureza esteticamente impensada do centro da cidade, o Theatro José de Alencar figura no meu íntimo como casa que hospeda o que vale a pena ser lembrado, trecho grifado e sublinhado em meio a palavras que passam despercebidas no texto dos dias. 

Não lembro quando adentrei pela primeira vez o espaço-templo de tantas artes, mas a primeira imagem que vem à mente ao pensar no TJA é a de uma coletânea extensa de fotos - minha mãe não economizava filme nas máquinas - que eternizam alguns momentos cruciais da minha infância naquele lugar.

Fui de pássaro a boneca de pano. Vivi, também, uma narradora, papel que prenunciava aquilo em que me transformaria quando feita mulher. Tudo cabia em um corpinho magro de um metro e trinta, mais ou menos, disposto a encarar com seriedade a oportunidade de pisar em solo que, sem entender, eu já sabia: é sagrado.

A chance de subir, ainda criança, no palco maior de Fortaleza, decorria dos festivais de fim de ano da minha academia de dança. Muito embora todos os momentos marcantes desses episódios tenham direta relação com as interpretações textuais que eu era convidada a fazer, entre um número de dança e outro, costurando a história do espetáculo.

Não saberia explicar como, mas me lembro perfeitamente da sensação de estar no fundo do teatro, pronta para cruzar a plateia em uma entrada que daria o tom do início de uma dessas apresentações em questão. Lembro-me do escuro, da quantidade enorme de gente (sempre multiplicada pela imaginação infantil) e da sensação de estar fazendo a única coisa no mundo que merecia estar sendo feita naquele momento.

Esse sentir voltou muitas outras vezes nas quais experimentei, como atriz amante e amadora, os palcos. Da mesma forma que sempre foi recorrente a deliciosa exaustão do dia inteiro que precede o espetáculo. Dia que costuma ter gosto de maçã, roupas leves e ansiedade, e que, no TJA, vem acompanhado de nuances especiais.

Em termos de palco principal, a prévia da “grande hora” de regra significa estar entre os camarins do porão, um local que, se você ainda não conhece, deveria. Além do charme arquitetônico que acompanha o contexto do Theatro, o lugar é a materialização desse sentimento de preparação para algo muito importante.

Estar no José de Alencar durante o dia, entre uma e outra sala de ensaio, já é, para mim, sinônimo de trabalho duro em algo que, logo mais, será compartilhado e virará propriedade coletiva. Faz parte do subtexto inominável, que ninguém vê na cena, mas está lá, tão presente na energia de quem faz do palco casa.

Falei das salas de ensaio e lembrei-me do que não teria como esquecer. Afinal, o universo que está ali, mais à direita de quem atravessa a entrada principal do Theatro, no que é chamado de anexo, tem vida própria e dinâmica peculiar. É onde acontecem as aulas do Curso de Princípios Básicos de Teatro - que pude conhecer de perto - e também onde ocorrem apresentações de diferentes formatos. Como o de plateia bilateral, que acolhia o “Tempo de Retirada”, espetáculo de conclusão do Curso Livre de Práticas Teatrais, promovido pelo Cangaias Coletivo Teatral, meu contato íntimo mais recente com o TJA. 

A peça, da qual fiz parte, ficou em cartaz durante os fins de semana de dezembro passado, na Sala de Teatro Nadir Papi Sabóia. A temporada incluiu a data do meu aniversário, o que me permitiu viver esse momento de estar em cena no meu dia, pela segunda vez no Theatro José de Alencar. A primeira foi em um daqueles festivais de dança de que falava, lá no palco principal. Na ocasião, assim como tornaria a acontecer em 2019, ao final do espetáculo elenco e plateia entoaram os parabéns em uma grande celebração à vida. Ainda era criança, mas, claro, não esqueço. 

Veja como as coisas são. Hoje, sou eu quem se faz espectadora para cantar esse “feliz aniversário”, de 110 anos, saudação em forma escrita. Como cartão, trago minha colagem de lembranças. Entrego-o à distância, é como dá. Prometendo mentalmente que “quando a pandemia passar…” a gente se encontra. Desejando que não fique no papel, que a gente se veja mesmo e em breve. Que seja em um dos palcos, na plateia, no jardim. Mas que seja. 

Querendo que as histórias de encantamento sejam tantas e sabendo que as de desapontamento, eventualmente, existirão. Sonhando com o linóleo, com o proscênio, com a rotunda, com o Theatro. Com um sorriso no canto da boca, dizendo: “Vida longa, José! Quero poder levar os meus filhos para te conhecer”.