Faça você mesmo

Na virada do século, muita coisa desapareceu no mundo, falo de profissões e estilos tradicionais que perduraram séculos, na mesma proporção do aparecimento de novos formatos de consumo, mercado, cultura e arte, com uma tecnologia digital exuberante, recolonizando e trazendo diferentes formas de viver. Todavia, o que mais incomoda hoje é que tornamos dependentes deste novo mundo, ou seja, da inteligência artificial.

Assim, na opinião do filósofo e teórico musical sul-coreano Byung-Chul Han, a sociedade moderna passou do "dever fazer" para o "poder fazer".

Atualmente, "vive-se com a angústia de não estar fazendo tudo o que poderia ser feito", porque há essa impressão de que tudo está disponível.

Se você não é um vencedor, a culpa é sua. "Hoje, a pessoa explora a si mesma achando que está se realizando". É uma lógica traiçoeira que faz com que todos sejam, ao mesmo tempo, um exército de si próprio. E a consequência de tudo isso é que "não há mais contra quem direcionar uma revolução". Agora, "a repressão não vem mais dos outros". Não existem responsáveis, nem inimigos ou vilões. É "a alienação de si mesmo", ressalta o pensador.

Nesse ambiente, as redes sociais comandam grandes espetáculos de pessoas comuns cujas necessidades não são mais as informações sobre personalidades, mas delas próprias. Elas precisam da distribuição cotidiana de uma grande quantidade de "likes". Produzem postagens caseiras em que são elas mesmas as celebridades instantâneas, expondo quadros cujos domínios são absolutamente domésticos, em espaço público virtual, momentos que vão além de suas relações pessoais. É o desfile de imagens sorridentes, de alegria e felicidade farta. Namoros bem-sucedidos, filhos ou netos recém-nascidos, pratos preferidos, bebidas sobre o linho da mesa posta, fotos de viagens, comprovantes de check-in em aeroportos internacionais. Divulgação de selfie em frente ao espelho do quarto de dormir, ou com artistas famosos, com modelos e seguidores de muitas tendências.

Interessante é que, conforme constatei outro dia em romaria, na Igreja do Horto, ao lado da grande estátua, em Juazeiro do Norte, existe um mural de fotos que os próprios beneficiários circularam pelas redes sociais, na ocasião e que obtiveram êxitos nos milagres solicitados ao Padre Cícero Romão, quando compraram o primeiro carro, ganharam na loteria, ficaram bem de saúde ( debelando moléstia grave e incurável), ou foram aprovados em concursos públicos.

A conclusão que se chega a partir da leitura de um dos títulos mais famoso de Byung-Chul Han, "Sociedade da Transparência", é que esse comportamento social surge devido a um consenso acrítico, muito artificial ou irreal, uma percepção maior no sentido de que "as coisas tornam-se transparentes quando abandonam toda a carga de negatividade", alisadas e aplanadas, feita por você mesma, sem nenhuma resistência na corrente lisa da comunicação e informação interessada.

Durval Aires Filho

Desembargador


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