Órfãos da Covid no Nordeste ainda aguardam benefícios 4 anos após início da pandemia
Em julho de 2021, o Consórcio Nordeste anunciou que os governadores da região proporiam a criação de um auxílio social de R$500 para órfãos que perderam pai e mãe por Covid-19. Batizada de “Nordeste Acolhe”, a iniciativa seria enviada às respectivas Assembleias Legislativas para que os deputados estaduais pudessem apreciar a medida.
Três anos depois do acordo, dois Estados - Bahia não criou e em Pernambuco não houve famílias interessadas - ainda não colocaram a medida em prática. Só neste mês de outubro, o Governo do Ceará enviou à Assembleia Legislativa (Alece) uma mensagem para a criação do programa Ceará Acolhe. Aprovada ontem (29), a medida tem previsão de início dos pagamentos somente a partir de janeiro de 2025, devido ao ano eleitoral.
Ela deve contemplar jovens em orfandade bilateral (perdeu pai e mãe) ou família monoparental (quando a família é formada somente por um dos pais). Pela proposta, o pagamento do auxílio será mensal até elas completarem 18 anos. Conforme a Secretaria da Proteção Social (SPS), 21 crianças que se enquadram na condição foram identificadas por meio do CadÚnico.
No entanto, para a psicóloga Ângela Pinheiro, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante da Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes pela Covid-19 (AOCA), o número é pequeno demais. Ela lembra que o Estado não dispõe de uma pesquisa robusta sobre quantos jovens estão realmente nessa condição.
“Vivemos num vácuo de dados. Uma das nossas demandas, desde o início do movimento, é que haja uma campanha que incentive as pessoas a procurar seus direitos e saber a quem recorrer para regulamentar a guarda e dar outros encaminhamentos”, ressalta.
Esta é a terceira e última reportagem do especial Órfãos da Pandemia, que mostra o contexto social de famílias atingidas pela doença e o andamento de políticas públicas criadas (ou não) para atender esse público.
O debate sobre uma medida assistencial para o Ceará não é novo. Em abril e setembro de 2021, entraram em tramitação na Alece dois projetos de indicação para instituir um benefício financeiro a órfãos da Covid-19. Uma das proposições foi aprovada em Plenário e estava sem movimentação desde 2022, aguardando acatamento do Poder Executivo.
Após uma intensa movimentação da sociedade civil, neste mês de outubro de 2024, o projeto de lei do Ceará Acolhe chegou ao plenário da Casa. Acatado para tramitação em regime de urgência, ele foi aprovado no início da tarde de ontem, com aprovação dos 33 deputados estaduais presentes na sessão. O texto foi sancionado pelo governador Elmano de Freitas (PT) nesta quarta-feira (30), estipulando pagamento no valor de R$ 500.
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Especialistas avaliam que o próximo passo é garantir que há informações suficientes para colocar o benefício em prática. O Ministério Público do Ceará (MPCE), por exemplo, lançou um questionário próprio para identificar órfãos por meio de respostas das 184 Promotorias de Justiça no Estado.
Para o promotor Lucas Azevedo, coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (Caopij), do MPCE, a elaboração de políticas públicas específicas emperra na falta de dados confiáveis sobre os jovens.
Com essa base coletada, explica o promotor, a expectativa é poder cobrar medidas administrativas e/ou judiciais para assistir ao público-alvo. Os resultados devem ser apresentados nas esferas estadual e municipal.
O processo também é uma luta contra o tempo: como lembra a procuradora de Justiça Isabel Pôrto, que acompanha a mobilização da AOCA, muitos jovens que poderiam ser contemplados pelos projetos já saíram da faixa etária da adolescência.
“Vários atingiram a maioridade, mas eles foram órfãos e o Estado é devedor deles”, ressalta a professora Ângela Pinheiro. No projeto aprovado pela Alece, porém, não há menção a esse público.
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Como funciona em outros Estados?
Para conhecer a operacionalização dos benefícios nos outros Estados nordestinos, o Diário do Nordeste contatou as nove Secretarias de Assistência Social da Região Nordeste. Na prática, somente Piauí, Sergipe, Paraíba, Maranhão e Rio Grande Norte realizam o pagamento dos valores – ainda assim, de forma tímida.
Somados, esses cinco Estados beneficiam 213 crianças e jovens órfãos, número aquém dos mais de 20 mil estimados pelo próprio Consórcio Nordeste. O que inclui mais pessoas é o Piauí, com 139 favorecidos. Já na Paraíba, o benefício é superior ao sugerido pelo Consórcio: R$534,32.
Pioneiro, o Auxílio Cuidar do Governo do Maranhão direciona recursos órfãos bilaterais, ou seja, que perderam pai e mãe. “Hoje, quatro beneficiários recebem auxílio no valor de R$500”, informou a gestão, alegando que a busca ativa continua com apoio de escolas e assistentes sociais.
Em Pernambuco, a Secretaria de Assistência Social, Combate à Fome e Políticas sobre Drogas (SAS) chegou a implementar o Benefício Continuado Pernambuco Protege. Porém, desde 2021, “não houve procura de famílias habilitadas para recebê-lo, resultando na suspensão dos repasses devido à ausência de beneficiários”, confirmou à reportagem.
Atualmente, Ceará e Alagoas estão no processo de criação dos Programas. Ambos já mapearam, pelo menos, 21 e 176 órfãos, respectivamente. Apenas a Bahia não iniciou movimentação. A Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (Seades) declarou que há “somente estudos internos para avaliação da possibilidade de ação futura”.
Tem que haver previsão orçamentária e um marco legal para a proteção integral. Não estamos pedindo nada que seja específico para os órfãos, mas que haja vagas suficientes para recebê-los. A gente insiste na ampliação dos serviços porque não adianta dizer que vai dar prioridade a eles e tirar a vaga de outra pessoa que vai ficar de fora.
Íris Oliveira, secretária da Assistência Social do Rio Grande do Norte e coordenadora da Câmara de Assistência Social do Consórcio Nordeste, explica que o Estado potiguar contempla somente 5 beneficiários. Por lá, os critérios são iguais aos da proposta do Ceará: orfandade bilateral ou monoparental.
Uma nova proposta de lei poderia aumentar o número para 156 crianças já identificadas com ao menos um dos pais falecidos pela doença, mas a ampliação, segundo ela, depende da vontade política em aprovar o plano e da colaboração dos municípios: somente 54 das 167 cidades responderam ao questionário estadual sobre o tema.
“O programa não é só a concessão da bolsa, mas o acompanhamento da situação escolar e da convivência familiar e comunitária”, frisa Íris. “Os jovens que deixaram o Programa porque já completaram 18 anos, na sua grande maioria, ainda não atingiram a Educação Superior. Isso mostra a importância desse Programa, de conseguir chegar junto no sentido de apoiá-los no acesso à escola”.
Ajuda municipal
Embora o Ceará ainda não tenha iniciado o pagamento do benefício, a Prefeitura de Fortaleza informa que assiste diretamente 31 crianças órfãs por Covid-19. Segundo a gestão, as famílias são acompanhadas pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e por agentes comunitários de saúde.
Elas foram inscritas no programa “Sim, Eu Existo”, que facilita o registro de nascimento tardio de crianças e adolescentes; no Bolsa Família; no Vale Gás; no Conselho Tutelar e no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), além de receberem prioridade na matrícula escolar e terem vacinas atualizadas.
“Todas as crianças permanecem com suas próprias famílias, com tias e/ou avós. Somente quatro, que não tinham pai ou mãe, foram encaminhadas ao Conselho Tutelar para direcionamento à adoção, sendo duas tias e duas avós as adotantes em processo”, finaliza a Coordenadoria Especial da Primeira Infância (Cespi).
Apoio financeiro é bem-vindo
Irani Alves, 60, cuida desde 2021 dos netos Sarah, hoje com 11 anos, e João Lucas, 3. Eles perderam a mãe, Maria Dolores da Silva, que faleceu por Covid-19 aos 27 anos, enquanto ainda estava grávida de João. O menino foi “retirado” em um parto emergencial e, desde então, os dois irmãos e a avó convivem com a dor da falta de Maria.
“Foi difícil, difícil demais… Além da dor da perda, ao olhar para aquelas crianças eu comecei a sentir que a minha filha não estava mais ali, sabe?”, conta Irani sobre o primeiro sentimento ao saber do falecimento da filha.
Mas a dor não esperou e permaneceu enquanto Irani teve de lidar com as decisões sobre a criação dos pequenos. Filhos de pais diferentes, tanto Sarah como João Lucas ficaram sob a responsabilidade dela. Ainda que os homens tenham se disponibilizado para o pagamento de pensão, ela explica que a vida mudou “completamente”, já que não conseguiu mais trabalhar para priorizar os netos.
Se é bom pra ela, ou se é ruim, não sei dizer. Eu só sei que é difícil, então eu sofro pela perda da minha filha e sofro pela dor da minha neta, mas faço tudo para vê-los felizes.
Até o momento, porém, Irani diz nunca ter recebido “nenhum tipo de contato” para discutir um benefício financeiro. “Se esse auxílio sair mesmo um dia, isso é muito bom, sem dúvida. Vai ser muito bom, meu Deus, não consigo nem imaginar. Hoje só tenho a pensão dessas duas crianças, e não posso trabalhar porque cuido deles”, ressalta.
Longe das questões burocráticas, o sentimento de pesar das duas crianças ainda permanece ali, pairando diante de uma falta tão imensa. Irani explica que Sarah, por exemplo, tenta não chorar e não se entristecer para que a avó, tão cuidadosa com os dois, não sofra ainda mais.
João Lucas, com apenas três anos, também passou a ouvir que a mamãe virou “estrelinha”. No momento, é a resposta que Irani consegue dar. “Agora, quando eu tô chorando, ele pergunta o motivo. Eu digo: ‘um dia você vai entender, um dia você vai saber’”.