A memória está no meio da rua. Já percebeu? Em Fortaleza, prestes a completar 3 séculos, os prédios antigos contam histórias sobre quem já fomos e das pessoas que vieram antes de nós e que moldaram o presente. Seja no primeiro hospital psiquiátrico, na escola católica para meninas ou nas casas centenárias da periferia, a História ainda possui alicerce sólido por aqui.

Porém, as rachaduras – ou melhor, as demolições de bens históricos como o Edifício São Pedro e o Casarão dos Gondim; e a falta de manutenção com diversos outros imóveis, tal qual o Farol do Mucuripe – alertam sobre a urgência da preservação. São páginas arrancadas ou borradas deste enredo.

Por isso, o Diário do Nordeste faz um passeio por algumas das edificações históricas em celebração aos 298 anos da capital cearense, neste sábado, 13 de abril, com o especial “Fortaleza: Que História É Essa?”.

A proposta da série de reportagens é apresentar lugares, pessoas e eventos históricos marcantes na existência de Fortaleza, mas que nem sempre são lembrados no cotidiano da cidade.

Antes disso, vale recordar um pouco da mais antiga construção ainda de pé – responsável, inclusive, por nomear a cidade: a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, à margem do Rio Pajeú, no Centro. A edificação original foi feita em 1649 por um oficial holandês, sendo disputada com os portugueses, e usada até durante as Guerras Mundiais.

Ali no Centro, aliás, estão concentrados imóveis históricos e basta uma caminhada para ver retratos de outros tempos. Também dá para enxergar a arquitetura preservada em casarões dos bairros Jacarecanga e Benfica, onde há moradias de famílias abastadas.

Contudo, o desenrolar da Fortaleza modificada pelo mundo e os próprios moradores aparece ainda hoje na periferia. É para lá que voltamos o olhar nesta reportagem e convidamos para uma breve excursão no tempo.

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O que um “asilo” conta sobre saúde mental

O primeiro hospital psiquiátrico de Fortaleza foi inaugurado em 1886 como "Asylo de Alienados", sendo uma testemunha ainda erguida sobre as transformações do cuidado com a saúde mental na Capital. O prédio, inicialmente, recebia presos, militares e pessoas vindas do Interior após uma seca que castigou o Estado, entre 1877 e 1879.

A ideia da construção surgiu como parte do processo “civilizatório” de Fortaleza que começava a crescer e tinha maior circulação de pessoas consideradas loucas. No começo, a estrutura chegou a ter aparelhos para banho de chuvisco e choque.

O contexto histórico da instituição está descrito em “Institucionalização da Loucura no Ceará: O Asilo de Alienados São Vicente de Paula (1871-1920)”, elaborado como tese de doutorado pela pesquisadora Cláudia Freitas de Oliveira e publicado pela Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2021.

Legenda: Estrutura antiga do hospital psiquiátrico é usado para atividades terapêuticas
Foto: Kid Júnior

Em 1882, foi publicada uma série intitulada "Cartas sobre a loucura" num jornal da época para apresentar questões relativas às definições da "loucura", em Fortaleza. A visão sobre a área na época, a partir dos textos, considerava que a inteligência estava ligada ao tamanho do cérebro, mas passou a entender os transtornos como uma questão de saúde.

Após 138 anos, o atual Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo, na Parangaba, mantém estrutura, móveis, quadros e pisos originais, mas com outra visão sobre o cuidado às pessoas com transtorno mental. A instituição filantrópica atua em parceria com o Sistema Único de Saúde (SUS).

"Antigamente, a psiquiatria era vista de uma forma bem diferente, eram usadas formas não convenientes e que hoje sabemos que não são mais (aceitáveis). Hoje temos uma modernização e o uso de medicações", observa Magda Busgaib, mordoma do Hospital Psiquiátrico.

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Legenda: Saúde mental era vista de forma menos científica e humanizada há mais de 100 anos em Fortaleza
Foto: Acervo Hospital São Vicente de Paulo

No momento, a unidade possui 130 leitos ativos (88 masculinos e 42 femininos) com média de 80% de ocupação. Os pacientes atendidos no Hospital São Vicente de Paulo são encaminhados pela Secretaria da Saúde do Município. Na unidade de saúde acontecem visitas, atividades terapêuticas, práticas esportivas e socialização num ambiente de calma.

A casa de saúde pertence à Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, que realiza as manutenções no prédio com recursos próprios. Embora o imóvel esteja prestes a completar 140 anos, ainda não há uma articulação para o tombamento do imóvel, mas nem por isso a preservação das estruturas é deixada de lado.

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Legenda: Espaços e mobiliário originais são preservados na instituição
Foto: Kid Júnior

"Tem que existir a necessidade de manter a história, essas paredes, cadeiras e tudo contam algo e não podem se acabar. O que nós temos é que modernizar dentro para dar mais conforto a quem precisa de tratamento", conclui Magda.

Relação entre fé e educação

A equação entre o antigo e o novo também faz parte do cotidiano do Colégio Juvenal de Carvalho, no Bairro Damas, com 91 anos de funcionamento. "Como acompanhar as demandas educativas de hoje e manter a nossa história enquanto prédio vivo?", questiona a irmã Rita Souza, diretora da escola.

Por lá, fachada, capela, estátuas, bustos e jardins, por exemplo, são mantidos como foram instalados na estrutura. Como demonstração dos tempos atuais, porém, uma nova sala abriga troféus e medalhas conquistadas em competições escolares.

Além disso, as transformações na forma de fazer educação aparecem na mescla de alunos, já que por muitas décadas a instituição recebia apenas meninas, e nas mudanças físicas para a instalação, por exemplo, de rampas de acessibilidade.

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Legenda: 1. Prédio foi inaugurado em 1933 2. Colégio já formou gerações 3. Antigos alunos retornam como pais
Foto: Acervo Nirez/Kid Júnior

"Os tempos vão evoluindo, mudando e se tornando mais exigentes e hoje, por exemplo, temos a dimensão da inclusão. Está como lei, mas faz parte também da nossa concepção, é o que nós acreditamos", completa a irmã Rita.

Criada em 1933, inicialmente chamada de Escola Maria Auxiliadora, a instituição dava aulas de catecismo e recebia meninas em situação de vulnerabilidade. As matrículas foram crescendo e a educação formal fortalecida na instituição que alinha e conhecimento.

Dessa forma, o colégio propõe atividades esportivas, artísticas e musicais para uma formação integral. Além disso, os professores buscam atualizar os conteúdos incluindo até robótica educacional

A história precisa ser preservada e respeitada, mas precisamos caminhar com os tempos e os lugares. Isso era sempre dito por Dom Bosco. Então, estar no Juvenal de Carvalho tem uma responsabilidade grande
Rita Souza
Diretora

Sylvia Alencar, mestre em Educação Brasileira pela UFC, contextualiza o surgimento da instituição de ensino de duas formas. Primeiro, como uma oportunidade de descentralizar o ensino no momento em que o Colégio da Imaculada Conceição e a Escola Normal, ambas no Centro de Fortaleza, eram as referências.

A questão comportamental do período também influenciou a articulação para a criação do colégio. Na época, Dom Manuel da Silva Gomes, o comendador Ananias Arruda e o Coronel Juvenal de Carvalho se organizaram para a compra do terreno e a construção.

“A Belle Époque estava em decadência em 1920, e começou a surgir o 'American Way of Life', ou seja, o modo de vida americano, que trouxe um arejamento do pensamento e do comportamento”, completa. Assim foram criados vários cinemas na capital cearense e as jovens reproduziam um estilo mais despojado e com mais autonomia que viam nos filmes.

Legenda: 1. Sala de aula 2. Capela do Juvenal de Carvalho 3. Estátuas ligadas à instituição
Foto: Kid Júnior

"As famílias que moravam no Interior e queriam dar uma educação primorosa às filhas, as levavam para o Colégio e elas moravam lá", comenta Sylvia sobre as internas que se juntavam às irmãs moradoras do local. Até a década de 1960, uma enfermaria existia para dar apoio à saúde de quem vivia lá.

Ex-aluna e ex-professora de História do Colégio Juvenal de Carvalho, Sylvia observa mudanças entre os docentes, que antes eram apenas compostas por religiosas, para uma diversidade maior. O que não muda, como reflete, é a relevância do espaço. "A biblioteca do Juvenal de Carvalho tem obras raras e uma quantidade imensa de obras didáticas e de literatura”, conclui.

Transformações no jeito de morar

Maria Celeste Almeida, de 73 anos, vive há mais de 50 numa casa construída há 102 anos, no Mondubim. O ano da edificação aparece estampado, ainda hoje, na fachada: 1922.

"Logo que eu cheguei, estava desocupada e meu esposo trabalhava na Prefeitura e nos deixaram aqui. Já tinham muitas casinhas, mas muita gente foi indenizada para a construção da rua", lembra sobre as outras edificações que já não existem no lugar.

A moradia ainda possui parte do piso original e as carnaúbas usadas como estrutura para o telhado. Diferente das habitações mais modernas, onde cada metro quadrado precisa ser bem utilizado pela falta de espaço, a casa de Celeste é ampla e mantém um quintal cheio de verde.

Legenda: 1. Mãe e filha vivem em casa centenária 2. Sala de jantar 3. Parte da estrutura permanece
Foto: Kid Júnior

Apesar das reformas internas para adequar às necessidades da família, a identidade externa não deve ser alterada. "Eu não quero deixar diferente não, é para ficar como está. Eu faço só pintar, não mexo no modelo, é algo de mim mesmo. Não quero mexer", frisa.

Alexandre Queiroz Pereira, geógrafo e colunista do Diário do Nordeste, analisa que o crescimento populacional em Fortaleza, motivado pela vinda de famílias do campo em períodos de seca, criou uma demanda por habitação que, muitas vezes, era "resolvida" no improviso.

"A primeira grande política habitacional que marca a cidade se dá nos anos 1960, com o Banco Nacional da Habitação e um sistema financeiro para captar recursos públicos para promover os grandes conjuntos habitacionais, como o Conjunto Ceará e o José Walter", conclui.

Já nos anos de 1970 e 1980, a capital cearense viu a verticalização de alguns espaços, como a orla da cidade. Num período mais recente, políticas públicas como o programa "Minha Casa, Minha Vida", do Governo Federal, marcaram a área da moradia. "Não basta construir apartamentos ou casas, precisa ter serviços públicos, senão não é habitação urbana", pondera o professor sobre a gestão pública.

Conhecer para proteger

É preciso divulgar os aspectos históricos dos imóveis da capital cearense para a preservação das estruturas, como analisa a professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC Beatriz Diógenes.

“É claro que tem outros imóveis que fazem parte do passado da nossa cidade e o que não está tombado corre o risco de ser descaracterizado”, cita sobre o instrumento legal.

Muita coisa foi demolida para dar lugar ao novo quando ambos poderiam coexistir.
Beatriz Diógenes
Arquiteta e Urbanista

Diante da ausência de ações efetivas, uma parte do patrimônio veio abaixo. São histórias que deixam de ser contadas na cidade.

“No que se refere ao patrimônio moderno, a gente vê com muita tristeza que esses imóveis são destruídos sem o devido reconhecimento da importância. Há poucos anos, o Hotel Esplanada, um edifício daquela magnitude, foi totalmente destruído”, exemplifica Beatriz.

A arquiteta, ao lado do também professor de Arquitetura e Urbanismo Romeu Duarte, assina o livro “Guia dos Bens Tombados do Ceará”, lançado neste mês, que reúne informações históricas sobre o patrimônio do Estado.

“A preservação envolve muitos agentes, não só o Poder Público, no sentido do tombamento porque até os edifícios públicos são abandonados, e da manutenção e conservação dos imóveis, mas dos profissionais ligados na divulgação”, conclui.

O que é feito para preservar

Questionada pelo Diário do Nordeste, no último mês, sobre a preservação de imóveis históricos de Fortaleza, a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) informou que faz o acompanhamento dos bens tombados em âmbito estadual.

“A Secult também contribui ativamente para a qualificação de diversos bens históricos, à exemplo da Estação Ferroviária Dr. João Felipe, que foi restaurada, modernizada e reinaugurada como o Complexo Cultural Estação das Artes”, exemplificou em nota.

"Reforçamos que a política de Patrimônio Cultural e Memória vai além dos instrumentos de proteção, editais e fiscalizações. Em 2021, foi implantada uma nova forma de acautelamento, a chancela da paisagem cultural, e, em 2022, foi sancionado o Código do Patrimônio Cultural, instrumento jurídico que agrupou as diversas formas de preservação formal do patrimônio em um único documento", informou.

Já a Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) informou que “resguarda e monitora a situação estrutural de edificações antigas do Município, com valor histórico-cultural para a cidade”.