Sem desfile de Maracatu e plano alternativo pelo segundo ano, qual o espaço para a festa popular?

"O cortejo é um grande evento da cultura, e o que me entristece é ver os eventos da cultura sendo cancelados enquanto a cultura do evento está prevalecendo", reflete o historiador Luiz Antônio Simas

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Com 280 integrantes, o Maracatu Rei Zumbi questiona o porquê de estádios de futebol estarem liberados e as tradicionais celebrações culturais, não
Foto: Fabiane de Paula

É quase Carnaval de novo. É pandemia também. Entre 26 de fevereiro e 1º de março, a maior celebração coletiva do povo brasileiro mais uma vez será contida para barrar a infecção viral. Sem regras específicas, feito acontece nos estádios de competições esportivas, e sem um plano alternativo para as apresentações, a festa do Maracatu ficou novamente retida nos barracões. 

Quem é brincante de maracatu não vive, sobrevive. Hoje está todo mundo disperso, isso enfraquece a tradição. Se não tem Carnaval, não tem ensaio e nem brincante. Sem brincante, morre o gosto pela coisa. Já são dois anos sem ter festa aqui em Fortaleza, só piora a situação de tudo”, lamenta Teonildo de Assis, presidente do Maracatu Rei Zumbi.

No Ceará, conforme o decreto Nº 34.541, publicado pelo Governo do Estado em 5 de fevereiro de 2022, está proibida a realização de eventos festivos de pré-carnaval e carnaval em espaços públicos. Por sua vez, o decreto Nº 34.544, de 12 de fevereiro, mantém a regulamentação de que eventos de caráter público ou privado podem acontecer com até 500 pessoas em locais abertos, e com 250 caso ocorram em recintos fechados. As medidas de segurança, a exemplo da cobrança do passaporte vacinal, devem ser cumpridas nas celebrações.

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Fortaleza, de forma específica, não promoverá o Ciclo Carnavalesco neste ano também em decorrência da pandemia de Covid-19. Em nota, a Secretaria Municipal da Cultura do município (Secultfor) informa que os recursos de quase R$14 milhões que seriam destinados ao evento – previstos na Lei Orçamentária Anual da Prefeitura – serão reorientados para ações de segurança alimentar, saúde e apoio à cultura. 

As decisões, de acordo com a pasta, são tomadas com base nas orientações da autoridade sanitária responsável, o Comitê Estadual de Enfrentamento à Pandemia do Coronavírus. Embora compreendendo as orientações frente ao nebuloso cenário, alguns representantes de grupos de tradição popular – em especial o maracatu, uma das mais antigas manifestações culturais da cidade, cujas agremiações não desfilam na Avenida Domingos Olímpio há dois anos – acreditam que determinadas ações poderiam ocorrer nas ruas seguindo os protocolos, perpetuando o costume ancestral.

Legenda: "Se não tem Carnaval, não tem ensaio e nem brincante. Sem brincante, morre a ideia, o gosto pela coisa", reflete o presidente do Maracatu Rei Zumbi
Foto: Fabiane de Paula

Ciente de que ajustes devem ser feitos na estrutura do cortejo, cumprindo normas sanitárias, o presidente do Maracatu Rei Zumbi argumenta que há viabilidade para que grupos realizem cortejos mantendo a segurança.

“Seria possível. Nós estamos praticamente preparados. Tá todo mundo com muita ansiedade para fazer Carnaval”, destaca. A proposta do brincante é de que as apresentações na rua sejam transmitidas de forma virtual ou pela televisão, portanto sem presença de público no local e com exigência de comprovante vacinal dos participantes.

“Em Fortaleza, são 14 grupos só de Maracatu e 35 agremiações ao todo. Nossas famílias têm gente tanto no interior do Estado quanto na Capital. Todas as pessoas assistiriam. Além disso, muitos não viajam no Carnaval – principalmente agora, com a pandemia. Ou seja, ficariam em Fortaleza e acompanhariam o desfile. Importante é o povo assistir em casa e a gente desfilar”.
Teonildo de Assis
Presidente do Maracatu Nação Zumbi

Nova agenda

Para Teonildo de Assis, há outro ponto importante: a ausência de apresentações dos cortejos em Fortaleza pode enfraquecer a ressonância da tradição na sociedade, gerando estranhamentos e o não-reconhecimento da identidade alimentada pelos grupos.

“É necessário que os maracatus se apresentem para toda a cidade, nas escolas, nas esquinas, nas areninhas… Para que o povo saiba o que é maracatu, que isso é nossa cultura popular”, diz.

Legenda: “É só dizerem que sim que a gente vai para a rua, em qualquer dia e a qualquer hora. Queremos brincar”, diz Teonildo de Assis, presidente do Maracatu Rei Zumbi
Foto: Fabiane de Paula

A Secultfor reforça que um diálogo frequente ocorre com grupos, blocos e agremiações carnavalescas de Fortaleza, incluindo os maracatus, “sempre visando apoio à cultura e aos trabalhadores da área”. Como forma de reparar os impactos da pandemia e do isolamento social, a pasta afirma que realiza programações envolvendo as agremiações

O texto da nota ressalta: “Ao longo de 2021, diversas ações promovidas pela Secultfor ocorreram junto às agremiações de maracatu. Para os próximos meses, uma nova agenda está sendo elaborada, ressaltando a data de 25 de março, quando é celebrado o Dia do Maracatu”.

Aguardar o momento ideal

Cantor, compositor, idealizador e presidente do Maracatu Nação Fortaleza, Calé Alencar situa que resistir é sempre necessário, sobretudo porque o maracatu é uma expressão cultural com sólidas raízes nos costumes de nossos ancestrais negros e indígenas. 

Após dois anos sem o carnaval de rua, não há como quantificar os brincantes do grupo do qual ele integra – na medida em que se reúnem para ensaios e preparação do desfile visando principalmente o cortejo na avenida Domingos Olímpio.

“Neste momento, a reação dos nossos brincantes é de uma imensa saudade, uma vontade grande de botar o maracatu na rua. Mas também há uma consciência em torno da necessidade de não promovermos aglomeração, de seguirmos as orientações sanitárias pra que possamos retomar a festa mais adiante”, defende.

Legenda: Calé Alencar, presidente do Maracatu Nação Fortaleza, afirma que a matriz cultural não se diluirá, apesar da ausência do desfile carnavalesco
Foto: Chico Gomes

No caso de cortejos com transmissão pela internet, seria necessário um edital específico para a atividade, conforme pontua. Calé também considera que a Acecce (Associação Cultural das Entidades Carnavalescas do Estado do Ceará) tentou dialogar com os órgãos competentes, apresentou alternativas, mas não obteve nenhuma sinalização para a publicação de editais que fomentassem o desfile.

“Eu penso com muito cuidado na possibilidade de ocorrer o cortejo nas ruas. O que vai orientar é a regra sanitária. Não há necessidade de impor a nossa vontade se não temos as condições necessárias para promover ajuntamentos. A solução é aguardar o momento ideal. Enquanto isso, esperamos que os órgãos municipais e estaduais da cultura cumpram com políticas de fomento e apoio aos maracatus que existem em grande número em vários municípios cearenses”.
Calé Alencar
Cantor, compositor, idealizador e presidente do Maracatu Nação Fortaleza

Considerando que o maracatu brinca nas ruas de Fortaleza há mais de cem anos, os grupos representam para Calé uma matriz cultural que não se diluirá – apesar da ausência do desfile carnavalesco. Na visão dele, a prática está consolidada como expressão cultural do povo daqui, e já há algum tempo não compõe apenas a grade do ciclo carnavalesco. Há um público fiel e imenso contingente de brincantes.

“É claro que há um sentimento de frustração. Mas, como frisei, precisamos atentar para as medidas sanitárias. Quando voltarem os cortejos, apesar da ausência de editais para manutenção dos grupos, a gente se organiza e faz a festa. Maracatu é resistência e compromisso com nossa ancestralidade”.

Tantos impactos

A discussão se estende para pesquisadores no ramo. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, Laís Cordeiro acredita que a reprodução dos desfiles carnavalescos aos moldes do período pré-pandemia realmente não seria possível neste momento. Segundo o que observa, os grupos agregam dezenas de brincantes e somente a presença desses integrantes já geraria aglomeração – além do público que possivelmente compareceria.  

“A festa acontecia na avenida, sem controle de acesso do público. Como seria possível viabilizar normas de segurança em relação ao combate de disseminação do vírus?”, provoca. “Acho que algo poderia ter sido feito, sobretudo tendo como proposta uma programação virtual dos desfiles num modelo adaptado”.

Legenda: Desfile do Maracatu Nação Fortaleza antes da pandemia de Covid-19
Foto: Chico Gomes

Nesse caso, o cortejo poderia reduzir o número de personagens ou de integrantes nas alas – algo que acontece quando os grupos realizam apresentações em escolas, por exemplo. A performance se desenvolveria com, no máximo, 20 brincantes. Para Laís, o formato online é possível de acontecer com recursos de gravação e apoio logístico aos grupos assegurados. 

Por outro lado, ela compreende que a ausência dessas experiências culturais acarretam uma fragilidade em torno da produção, apreciação e fruição da cultura por parte da sociedade. No geral, não há oportunidades para contemplar, consumir e se aproximar de práticas culturais tão marcantes na formação histórica e social do Ceará. 

“A cultura provoca elo entre as pessoas, reconhecimento e pertencimento identitário. Educa, alerta e convida à reflexão sobre pautas coletivas. E os desfiles dos maracatus são exímias expressões de promoção da cultura e de sua dimensão cidadã na nossa cidade”.
Laís Cordeiro
Socióloga

Exatamente devido a este último ponto, a socióloga não acredita que haja uma desmobilização em torno das práticas do maracatu mediante a ausência dos cortejos. Os grupos podem não estar compondo programações de Carnaval ou outros eventos presenciais, mas continuam com atividades comunitárias nos bairros de origem, mantendo a convivência por grupos de whatsapp e pelas redes sociais. 

“O fôlego de resistência dos maracatus é forte e se perpetua por anos. Vejamos que o Az de Ouro já tem 85 anos e o Rei de Paus completou em janeiro 68 anos de fundação”. Uma longevidade que também se explica pela dimensão simbólica e por vivências de afeto. Os maracatus são formas de expressão da própria existência para muitas pessoas. 

Famílias de duas, três gerações participam dos grupos; amizades e casamentos surgem na convivência motivada pela prática. Laís percebe que os brincantes ressignificam o próprio cotidiano, a figuração social, quando podem ser um príncipe, uma rainha, um batuqueiro ou um porta-estandarte ovacionado pela plateia que assiste aos desfiles. Naquele instante da festa, afastam-se do papel primeiro vivenciado por difíceis condições de existência.

Legenda: "Há uma circulação de renda na produção da cultura que às vezes é menosprezada”, enfatiza pesquisadora sobre movimento dos maracatus
Foto: Fabiane de Paula

“A maioria dos brincantes são pessoas em situação de vulnerabilidade social que encontram nos maracatus um refúgio de lazer, pertencimento étnico-racial, representatividade cultural e um espaço compartilhado de afetos. Entendo que os impactos são muitos. Pensando pela perspectiva dos grupos, são dois anos sem realizar uma importante apresentação, o desfile carnavalesco – o que significa, de modo prático, o não recebimento de recursos oriundos de editais governamentais que fomentam a festa em Fortaleza. O apoio financeiro recebido ajuda na sustentabilidade estrutural das agremiações. Há uma circulação de renda na produção da cultura que às vezes é menosprezada”, enfatiza.

Não à toa, pelo que reflete, a execução de políticas culturais direcionadas aos maracatus seria uma saída possível. Os editais de fomento ao Carnaval, por exemplo, foram suspensos, mas por que não mobilizar o recurso já acordado no certames para promover outras ações junto aos grupos? 

“É preciso destacar que o maracatu é registrado como patrimônio cultural de Fortaleza, portanto espera-se que os órgãos culturais atuem na promoção e salvaguarda da manifestação, entendendo a importância e valor simbólico como patrimônio cultural da cidade. Que os agentes institucionais que gerenciam as políticas culturais discutam esse cenário com as agremiações e desenvolvam alternativas de continuidade e manutenção dessa manifestação visando a longevidade das práticas”.

Cultura do evento e evento da cultura

Luiz Antônio Simas endossa o panorama ao trazer para o centro do debate a diferença entre evento da cultura e cultura do evento. Para ele, a cultura do evento é aquela que não é orgânica, sem experimentações no sentido da vivência. Fugidia, se constitui como um simulacro. “Fico muito triste porque o Carnaval privado, da cultura do evento, vai acontecer”, confessa o escritor, professor e historiador carioca, vencedor do Prêmio Jabuti 2016 com a  obra “Dicionário da história social do samba”, escrita com Nei Lopes. 

“Em vários lugares do Brasil, festas privadas vão ocorrer em clubes e mansões. O Carnaval privado acontecerá no meio da pandemia. O Carnaval que não vai ocorrer é aquele orgânico, da rua, das escolas de samba, dos blocos e maracatus, dos clubes de frevo, dos afoxés. Isso me preocupa muito porque eu penso o Carnaval como um evento da cultura”, completa.

Legenda: De acordo com Luiz Antônio Simas, um maracatu não desfila de forma gratuita: os grupos desfilam porque existem
Foto: Chico Gomes

Segundo ele, um maracatu não desfila de forma gratuita, porque precisa existir. O que acontece é o inverso: os grupos desfilam porque existem. “Uma escola de samba não existe para desfilar. Ela desfila porque existe. Então, o desfile, o cortejo, é um grande evento da cultura, e o que me entristece é ver os eventos da cultura sendo cancelados enquanto a cultura do evento está prevalecendo. Isso é muito grave”.

Problemático porque Simas enxerga, nessa dinâmica, o esvaziamento do sentido mesmo da cidade, da rua. Crescido envolto pelo carnaval carioca – hoje, é jurado do Estandarte de Ouro, mais antigo e importante prêmio extraoficial do carnaval do Rio de Janeiro, considerado o “Oscar do samba” – o estudioso diz que a cultura do evento está absolutamente dominante nesse carnaval. 

“Esses eventos gratuitos – gratuitos não no sentido do dinheiro, porque eles são pagos, mas no sentido mesmo da vivência, da experiência, do orgânico, da tradição – vão acontecer. Agora, aqueles que são mais orgânicos e emblemáticos, estão cancelados. É uma pena”.
Luiz Antônio Simas
Escritor, professor e historiador

Os impactos, vale destacar, não são apenas simbólicos. Conforme já havia adiantado Laís Cordeiro, a cultura momina movimenta uma densa economia criativa. São profissionais que trabalham na confecção de fantasias, adereços, carros alegóricos, compra de materiais diversos, entre outras atividades. Existe uma cadeia de costureiros, marceneiros e coreógrafos que atuam na criação dos desfiles de escolas de samba, maracatus e outras manifestações. Todos estão parados neste momento.

Simas sublinha sempre ter defendido as medidas sanitárias de contenção do novo coronavírus, uma vez terem sido tomadas baseadas em argumentos científicos. Porém, ao longo desse processo, também testemunhou um grande preconceito contra o Carnaval. “Isso porque as festas privadas, os mega-shows, nada disso foi cancelado. O Carnaval foi o ‘Boi de piranha’ dessa circunstância. Foi aquele entregue à sanha das piranhas para que a boiada pudesse passar”.

Legenda: Estudioso aposta na reinvenção da festa, na capacidade transgressora do Carnaval
Foto: Fabiane de Paula

Em paralelo, aposta na reinvenção da festa, na capacidade transgressora do Carnaval. A história da folia não nos permite achar que ela vai sucumbir. “Acredito que vai continuar viva, que vai se redefinir, reconstruindo o sentido da festa num Brasil, num mundo que vai superar a pandemia. É nessa capacidade de regeneração que aposto, uma habilidade que o Carnaval tem de incessantemente se reinventar como a grande celebração coletiva do povo do Brasil. No fim das contas, isso é o que vai prevalecer”, conclui.


> Breve história do maracatu de Fortaleza

As primeiras experiências de maracatu em Fortaleza são observadas ainda no final do século XIX, quando cortejos de pessoas dançando e tocando instrumentos saíam pelas ruas do Centro da capital celebrando reis e rainhas do Congo. Constrói-se essa aproximação entre as manifestações de corações de Autos do Congo – celebração cultural das populações negras que aqui habitavam – com o que se configuraria depois como maracatu no Estado. 

No século XX, há um marco de muita relevância nessa trajetória: a fundação do grupo Az de Ouro, em 1936, pelo senhor Raimundo Alves Feitosa. Conta-se que ele visitou Recife e assistiu a grupos de maracatu e quando voltou a Fortaleza decidiu  montar uma agremiação inspirada naquela expressão cultural aqui na cidade. Cria-se então outra narrativa para os maracatus no Ceará como prática motivada pelas figurações dos maracatus pernambucanos. 

O Az de Ouro ainda é atuante e influencia a formação de saberes e memórias acerca dos maracatus desde a criação. Muitos grupos surgem ao longo das décadas. Entre os que ainda estão em atividade: Rei de Paus (1954), Vozes da África (1980), Nação Baobab (1994) – e nos anos 2000, esse número de agremiação se expande com a fundação do Rei Zumbi (2000) – Nação Iracema (2002), Nação Fortaleza (2004), Axé de Oxóssi (2006), Solar (2006), Filhos de Iemanjá (2008), Nação Pici (2009), Rei do Congo (2009), Nação Palmares (2013).  

Cada grupo possui especificidades na organização do cortejo, mas existem características semelhantes entre as agremiações, a exemplo da presença de personagens: porta-estandarte, balaieiro, casal de pretos-velhos, e alas de índios, baianas, negras, ala da corte com rei, rainha, príncipes e princesas. As sonoridades emitidas pelos desfiles também são variadas, na maioria conduzidas por instrumentos percussivos – com destaque para o “triângulo de ferro”, um marcador sonoro do batuque. 

A pintura do rosto com tinta preta igualmente não é unânime. Existem grupos que desfilam com os personagens usando essa máscara artesanal como um artefato de reafirmação da identidade étnico-racial negra daqueles papéis encenados. Há, porém, outros grupos que deixam a escolha dos brincantes desfilar ou não com o rosto pintado. Essa diversidade é um reflexo dos sentidos plurais que cada prática da manifestação cultural pode assumir diante das disputas de narrativas sobre os maracatus acionadas por cada liderança e pela capacidade de reinvenção, criação e transformação das expressões culturais e dos praticantes.

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