Nordeste sem São João é Lapônia sem Papai Noel

Legenda: São João de 2011, no Parque do Povo, Campina Grande, Paraíba
Foto: Cacio Murilo / Shutterstock.com

O ministro motosserra caiu, o escândalo da vacina indiana fedeu no Palácio do Planalto, o VAR do STF confirmou a trapaça do ex-juiz da Lava Jato, o bandoleiro Lázaro seguiu em ritmo de bang-bang no Centro-Oeste... Tudo isso acontecia ao mesmo tempo e eu só pensava, com minha civilidade matuta, naquele instante sagrado em que se acende a fogueira de São João no terreiro de casa. É o fiat lux, o faça-se a luz da criação do universo.

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O momento mágico em que o fogo começa a crepitar na lenha, as faíscas sapecam as canelas dos meninos, sobe o cheiro do milho, o mungunzá (salgado) é servido, os adultos lambem os beiços com a primeira bicada de aguardente e a fumaça encobre de Juazeiro a Campos Sales.

Ah, o mungunzá, como se fosse uma feijoada indígena (não aquela iguaria com açúcar), é o meu gatilho proustiano da memória. Sim, com pequi da Chapada do Araripe, mocotó e tripas, de preferência. Um milharal de sustança para nenhum Pantagruel se arrepender do banquete.

Quem dera. Ficaremos apenas na vontade. Se bem que nos pés de serra e em alguns sítios isolados, o ritual até pôde ou pode ser mantido, com um educado forró em família, no máximo. A grande farra, porém, na sua versão do relabucho mais profano, foi apagada — de novo! — por causa da pandemia e do atraso na compra de vacinas sob responsabilidade federal do Ministério da Saúde. Pena.

Interior do Nordeste sem festa junina é Lapônia sem Papel Noel. É Paris sem luz. É Lisboa sem Tejo. Para dizer ainda pouco sobre tamanho prejuízo.

Pense na abstinência, imagina a tremedeira, coisa de ver bicho nas paredes. É uma nação nordestina inteira sem a sua festa mais importante. Muito mais que Natal, Réveillon, Carnaval ou micaretagens avulsas. Nem se compara. Você sabe lá o que é uma Caruaru, uma Campina Grande, uma Barbalha sem a celebração junina? As cidades chegam a perder a alma encantadora das suas ruas, com o silêncio das sanfonas e os altares sem os noivos e as noivas.

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É, seu Luiz, este ano Joaquim não dançou com Zabé, Luiz nem viu a Yaiá, Janjão não ligou pra Raqué, não houve rapapé no salão. O jeito, Gonzaga, foi atiçar as brasas da memória e rezar para que este tenha sido o último São João sem fogueira. Vade retro, Coronavirus, que a vacina nos proteja.

*O texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.