Lengo, lengo, tengo... Pense na importância do vaqueiro

Somente em 2013, a profissão de vaqueiro foi regulamentada no país

Foto: A.C. ALVES

“Eu venho dêrne menino,/ Dêrne munto pequenino,/ Cumprindo o belo destino/ Que me deu Nosso Senhô./ Eu nasci pra sê vaquêro,/ Sou o mais feliz brasilêro,/ Eu não invejo dinhêro,/ Nem diproma de dotô.”

Solto o Patativa, na voz do vinil de Raimundo Fagner, para lembrar de uma criatura essencial e fundadora da ideia de Nordeste. Sua Excelência o vaqueiro, cuja data comemorativa, no sentido regional do calendário, se deu nesta semana, 19 de julho, na precisão do relógio de Serrita.

O ferro em brasa que firma as letras iniciais do proprietário do gado marca igualmente o vaqueiro. Quando o ferro chia no couro da rês, a pele de quem-com-o-ferro-fere é tatuada pela mesma repetida sina. Ali, no curral que cerca a rotina, o que é bicho e o que é humano se confundem na mesma trajetória. Ambos marcados, o boi ainda estrebucha suas dores: o homem, na maioria das vezes, segue no silêncio que lhe resta para alimentar o sustento e o próprio amor ao ofício que herdou do lugar e da família.

Uma legião destes homens dos sertões atravessa uma vida sob o regime duro das fazendas, sem garantias ou benefícios trabalhistas, longe das lentes da lei e protegida apenas por Deus e pelo gibão de couro. Nem sempre a fé cega e a indumentária destes guerreiros do sol conseguem evitar um espinho no olho ou uma queda capaz de afastá-los do ofício. No que sobra, quando muito, uma sobrevivência de favor e a memória dos garranchos da caatinga no aperreio permanente do juízo.

Quantos vaqueiros cegos vagueiam sertões adentro. A sorte é quando é apenas de uma vista, celebram muitos. Um minuto, um segundo, um décimo e já era a fatigada retina diante da espinheira do caminho. Sina de assum preto sem a lenda da melhoria do canto.

Somente em 2013, a profissão de vaqueiro foi regulamentada no país, sob o governo Dilma Roussef, depois de séculos de clandestinidade de um afazer tão antigo quanto a chegada do gado no Brasil, ainda na primeira metade do século 16. 

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Até então, apenas figurava nos nossos livros didáticos como tipo característico nordestino, brasileiro. Sob o sol que deixa sua pele vincada como uma madeira de xilogravura ou um chão rachado de açude, prossegue com a sua vida mais de gado do que de gente.

Graciliano e Guimarães Na arte de viver sem garantias, o vaqueiro é mestre. Sobrevive, em matéria de direitos e salvaguardas, como o velho matuto na música de Gonzagão; sem rádio e sem notícia das terras civilizadas. 

Somente nas artes, no cancioneiro e na literatura, o homem do gibão de couro tem a sua proteção poética. Tem o vaqueiro de Patativa do Assaré (como frisei na cumeeira dessa dessa crônica), tem o Fabiano das “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, tem os tantos de Guimarães Rosa, cuja obra está prenhe de aventuras desta mesma natureza encouraçada.

Criado e crescido no meio de familiares vaqueiros do Ceará e de Pernambuco, lembro até do barulhinho cruel, chiiiii, do couro e da carne do boi sob a brasa do ferro dos fazendeiros. Nós, os meninos, ali de butuca, testemunhando o trabalho e a sina. No que saltava Chiquim Inglês ou Luíz Nunes, no Sítio das Cobras (município de Santana do Cariri, Ceará), entre um gole e outro na aguardente, com um aboio triste que marcava a cerimônia.

Aquela zuada nunca sai dos ouvidos. Por mais que um homem mude de vida e de lugar, o aboio dos vaqueiros não larga sua memória afetiva. Aqueles chocalhos também são guardados para sempre, lengo-lengo-tengo, no juízo até o final dos dias.

Couro, seca e miséria Mesmo com toda a falta de proteção e garantia mínima no ofício, há um quê de mítico, místico, talvez sagrado, na arte de cuidar do rebanho ao longo desses anos todos nos sertões e seus ciclos de couro, seca e miséria.

“É mando de Deus se misturar aos bichinhos, de gado aqui na terra ninguém passa... Por mim mesmo, nem curral nem a fala do homem nos desiguala, de dois pés ou quatro patas, que diabo importa?”, resgato aqui nos quase incompreensíveis garranchos de um velho caderno de repórter os dizeres de Pedro Joaquim dos Santos, o Pedró Quincó, 64 anos quando estive com ele, em 2003, na calçada alta da sua casa em Barcelona, município do Rio Grande do Norte.

“Não é que seja sacrifício, moço, pensar assim é tão pouco: é obediência às coisas lá de cima... Se fosse depender de recompensa e ouro, ´mió desencantar desse mundo”, disse o galego sertanejo.

Vale a pena lembrar mais um pouco desse personagem de carne e osso e lágrimas – Quincó chorava muito ao contar sua lida –, que marcou as minhas andanças de colhedor de histórias. Um pouco do meu caderno de rabiscos: “É fraco do juízo”, diz a mulher, Tereza Patrocínio dos Santos, 55 anos. “Ele acorda, noite alta, com lembrança de ‘pegança’ de boi e de todas as necessidades da vida, atordoado da cabeça, feito uma assombração dentro de casa, tenho é medo”, conta. Os vizinhos fazem um círculo com o dedo indicador, na altura das têmporas, para dizer que o homem não gira bem da cabeça.

Pedro chora quase o tempo inteiro. Calado ou narrando sua trajetória. “O povo diz que sou fraco do juízo. E sou mesmo. Saía de casa, atrás de boi dos outros, sem deixar nada pros meninos (doze nascidos, cinco sobreviventes), e a cabeça não sossegava. Pegar boi me deixava nervoso, um nervoso que eu gosto até hoje, mas eu chorava nos descampados, meião do mato, por causa dos meninos... Sabe um passarinho que deixa as crias no ninho em pé de juazeiro?”

Pedro limpa os olhos na manga de camisa. Macho nordestino sem vergonha do choro, do soluço que funciona como ponto e vírgula de uma crônica das dores do mundo. Trabalhou a vida inteira para fazendeiro que tirou-lhe o couro e o despediu como gado que dá carne de terceira. Os vizinhos, de tanto vê-lo chorar, nem mais olham. “É fraco do juízo”.

Ele só fica um tanto sossegado quando está no meio do deserto, a caatinga já é rala, e grita coisas para os céus, em língua de pentecostes, “misturo fala de bicho, mocó, preá, cachorro e gente”. Falar com esses bichos é como se fosse uma terapia ou algo do gênero da psicanálise.

Repare agora na Missa do Vaqueiro. “Numa tarde bem tristonha/ Gado muge sem parar/ Lamentando seu vaqueiro/ Que não vem mais aboiar/ Não vem mais aboiar/ Tão dolente a cantar. // Tengo, lengo, tengo, / lengo, tengo, lengo, tengo/ Ei, gado, oi...”

Até hoje o aboio de Luiz Gonzaga ecoa entre Exu e Serrita, no sertão pernambucano, em um lamento pela morte de Raimundo Jacó, primo de Gonzagão covardemente assassinado em 8 de julho de 1954. Jacó estava em uma “pega de boi”, caatinga adentro em busca de umas reses desgarradas do rebanho. Foi morto, traiçoeiramente, por um colega invejoso da sua arte. É o que conta a real saga sertaneja.

Em louvor a Jacó, todo santo ano, em Serrita, é celebrada a Missa do Vaqueiro, um ritual sagrado desde 1971, sempre no terceiro domingo de julho. O altar é de pedra. Nada mais representativo dessa profissão historicamente tomada apenas como sina ou destino repassado de gerações para gerações. Não se sabe mesmo onde termina a vida de gado e começa a vida de gente. Quando marca um, o patrão, simbolicamente, ferra os dois.



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