Bacurau tem a política do Brasil de baixo e do Brasil de cima
De novo, só para variar, o Nordeste ganha o mundo. Sabemos que a onda toda está voltada ao “O Agente Secreto”, filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho. A fita foi um pipoco no festival de Cannes e agora está na mira do Oscar. Extraordinário para o cinema brasileiro.
Quero voltar, porém, ao sucesso permanente de “Bacurau”, disponível na Globoplay e Netflix. Retorno por dois motivos:
1) é a obra de arte mais certeira sobre a relação entre “o Brasil de baixo e o Brasil de cima”, como o cearense Patativa do Assaré tratava as desigualdades regionais do país, a peleja política Nordeste/Sudeste;
2) o Ministério Público da Itália abriu investigação sobre um possível “safári” para atirar em humanos durante a guerra na Bósnia-Herzegovina, coisa que “Bacurau” exibe como se fosse apenas uma aventura da ficção.
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Ah, essa terra ainda vai tornar-se uma imensa Bacurau. Retomo uma velha viagem que fiz a esse vilarejo que pode ser localizado em qualquer lugar da Nação Semiárida.
— Quem nasce em Bacurau é o quê? —pergunta a mulher do Sudeste recém chegada à bodega do povoado.
—Gente — responde o menino, mesmo que a pergunta fosse dirigida a uma vivente adulta, a dona do estabelecimento
São muitos os sentidos do filme. Diversos como os gêneros e subgêneros que viajam da ficção científica ao western-spaguetti. Dizer que ali mora gente, no entanto, talvez seja a grande moral política da fábula sangrenta.
Rapaz, é como se aquele sertão altivo, apesar de riscado do mapa, puxasse com o violeiro Carranca (personagem de Rodger Rogério, o lendário compositor do Pessoal do Ceará) um coro de provocação ao resto do Brasil: Ai essa terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se uma imensa Bacurau.
Uma imensa Bacurau, repito o refrão, na ideia de sobrevivência, na arte de teimar em ser gente e algum cheirinho de vingança (humanum est) nas ventas. Pego bigu no fado do Chico e do Ruy Guerra para tomar o vilarejo do “Nordestern” como exemplo de reação organizada ao tratamento ao plano de extermínio por parte dos gringos invasores aliados ao coronelismo-coxinha do prefeito Tony Jr., na interpretação fria e magistral do ator paraibano Thardelly Lima.
E não se trata de forasteiros comuns do clichê de um bang-bang qualquer. Os americanos brincam de jogos mortais, como em um reality, para eliminar os habitantes da aldeia sertaneja —ponto sofisticadíssimo do roteiro do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Na primeira sessão que vi em SP, ainda em 2019, o público vibrou e aplaudiu como nas minhas jornadas vespertinas no cine Eldorado (anos 1970), em Juazeiro do Norte, ou no Veneza (década 1980), no Recife. Catarse geral e irrestrita. Bacurau ultrapassa a fronteira do “cult” e resgata esse bafo no cangote dos cinemões de rua nas tardes de sábado e domingo. Deixávamos o escuro da sala para voltar à claridade da rua repetindo os gestos, estripulias e as mungangas dos atores. Ah, “O voo do Dragão”, com Bruce Lee, que voadora espetaculosa.
As mulheres de Bacurau miram-se no exemplo das heroínas de Tejucopapo, as destemidas que expulsaram, a pau e pedra, os holandeses que pretendiam saquear o vilarejo a 60 km do Recife, em 1646. Aí vemos Carmelita (Lia de Itamaracá), a matriarca que representa a utopia da água e da fartura da nação semiárida; Domingas (Sônia Braga), com sua blasfêmia alcoolizada e a valentia do cuidado rotineiro com o povo; a Teresa (Bárbara Colen) que retorna mais forte ainda... Sem falar na Deisy (Ingrid Trigueiro), que dá um tiro de escopeta ao melhor estilo Chigurh (Javier Barden) no faroeste americano “Onde os fracos não têm vez”.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.