A gente vai atravessando a vida, um dia depois do outro. E quando faz as contas do que já viveu, percebe o quanto foram valiosas as viagens, os dias longe de casa, as coisas novas que os olhos descobriram e nunca vão esquecer. Por isso eu acho que trabalhar viajando é uma sorte. Costumo aceitar muito rapidamente os convites para trabalhos em cidades que ainda não conheço. Por isso eu disse sim para Teresina em poucos minutos, queria muito conhecer o Piauí.
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O convite era para dar uma palestra no Salão do Livro do Piauí, uma ação de resistência em plena pandemia, um ato de fé no livro e na palavra. Aos poucos a gente vai conhecendo as pessoas, os produtores do evento, os motoristas que nos ajudam a desbravar a cidade, os outros convidados, os jornalistas e escritores do local. Assim a cidade se desenha na cabeça, pela voz das pessoas, pelas comidas e bebidas.
Teresina é a cidade dos dois rios, Poty e Parnaíba, essa é a primeira lição de Geografia do lugar. As outras lições acontecem de acordo com as companhias, cada um tem o anfitrião que merece. Pois eu tive os melhores: um nos levou para conhecer o acervo privado do poeta Torquato Neto. Outro nos conduziu por um passeio noturno sobrenatural que terminou no Maranhão.
Zorbba, marido de Laís, encheu o tanque do carro para levar a mim e meu companheiro nos recônditos escuros da cidade. Sua voz era a narrativa que costurava os assombros e nosso roteiro começou em um manicômio abandonado, o Sanatório Meduna, ao lado de um shopping que passou por dificuldades para ser construído por resistência das almas, ele disse. As janelas escancaradas assustam e o passeio estava só começando.
Andamos pelas praças, os prédios reformados, destruídos, os gatos tomando conta da rua como donos, organizados e atentos ao carro intruso que rompia o silêncio da madrugada. Fomos ao Poty Velho, onde os rios Poty e Parnaíba se encontram e onde estão as olarias da cidade. É lá que as famílias modelam os pratos de barro, os santos, os objetos de uso diário e copiam as pinturas rupestres encontradas no sítio arqueológico da Serra da Capivara. Andamos pela rua dos prostíbulos, que só funcionam durante o dia.
E quando percebemos, de repente, já estávamos atravessando a ponte e chegando a Timon, no Maranhão. Aprendi com Zorbba que um cemitério à noite é lugar livre de fantasmas, pois estão todos trancados na igreja. Conhecemos de perto o ex-bandido mais perigoso de Timon, que hoje vaga doente pela cidade como um zumbi.
Esse passeio terminou perto das duas da manhã e já rendeu material para um livro de terror completo. Eu não imaginava conhecer essa Teresina assombrada, viajei com uma música suave na cabeça, de poucos versos, refrescando as ideias. A “Cajuína”, do Caetano Veloso.
Sou uma cearense orgulhosa da invenção do Rodolfo Teófilo e sei que a cajuína é coisa nossa. Mas sei também que essa música foi escrita quando Caetano Veloso visitou o pai do poeta Torquato Neto em Teresina, para levar seu consolo pela morte do amigo.
A família cuidou bem do acervo do poeta, guardou seus cadernos, diários, manuscritos e graças ao talentoso poeta Thiago E, podemos estar perto desse material.
Li os diários de seus dias angustiados de internação em hospitais psiquiátricos, suas confissões sobre a dificuldade de estar vivo, a depressão, a doença mental. Li os originais dos poemas, das músicas que eu já conhecia. Mamãe Coragem, Louvação, Geleia Geral. A imensa surpresa foi achar o processo de criação de Go Back, seu poema musicado e gravado pelos Titãs.
Páginas e mais páginas e mais páginas testando o lugar das palavras, o som, a combinação, até chegar no resultado que conhecemos e que virou o refrão “só quero saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder”. A intimidade do processo criativo, de uma vida cercada de dúvidas e palavras. Voltei de Teresina com a frase do Torquato Neto na cabeça. A vida é curta demais para perder tempo com o que não vale nossa crença. Valeu a pena ir à Teresina para entender, melhor, os recados do poeta.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.