O que é, afinal, o Nordeste? Quantos "nordestes" existem em um Nordeste só? Quantas caras, línguas, jeitos, sabores, sentidos? Quanta política, quanta arte, quanta fé? Quando surgiu o Nordeste? Quando você entendeu que era nordestino? Se o Nordeste é uma grande ficção da vida, quantos mais podemos inventar?
Fiquei me perguntando sobre isso ao entrar em contato com a obra do historiador Durval Muniz, em A invenção do Nordeste e outras artes. Nela, Durval apresenta uma cartografia nordestina propondo a ideia de que nossa região só foi “criada” por volta de 1910. Antes, o Nordeste simplesmente não existia.
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Até meados da década 10 do século passado, os nordestinos não eram percebidos. Era como algo deslocado do Brasil. Não chegávamos a ser nem criticados ou discriminados como hoje em dia, porque, realmente, para o restante do país, não se ouvia falar na nossa gente. Nem a fome, nem a sede, nem a estiagem eram noticiadas, somente vividas.
Por volta de 1915, quando a seca atinge a região de uma forma brutal, é que as elites locais descobrem que buscar verbas e apoio da capital federal com a justificativa de resolver esse problema era uma ótima fonte de recursos. Então, o Nordeste começa a ser conhecido como “a região da seca”.
Quando o cangaço começa a atuar, as tropas governamentais passam a “defender” seus territórios. Durval, então, escreve que “o Nordeste é, pois, uma região que se constrói também no medo contra a revolta do pobre, do medo da perda de poder para a ‘turba de facínoras que empestavam o sertão’”.
Assim, ao longo do livro, o professor traz inúmeros acontecimentos que nos ajudaram a criar o que se conheceu e o que se conhece de Nordeste, até chegarmos no famoso Nordeste de Jorge Amado, de Dorival Caymi, de Gil e Veloso, de Ivete e de Carlinhos Brown, de Suassuna, de cangaço, de praia e de festa, de religiosidade e de cordel.
Então parei pra pensar nos "nordestes" que conheci, com as referências do tempo de escola, com o Nordeste da TV, do jornalismo, da teledramaturgia, os "nordestes" dos livros que li, das músicas que escutei, das igrejas e terreiros que andei, do teatro que assisti e que construí. Pensei nos "nordestes" que me ensinaram, me inventaram e em todos que criei na minha cabeça.
Aí me cai de paraquedas a voz de Juliana Linhares, cantora e compositora potiguar. A primeira vez que ouvi Juliana cantar foi de forma despretensiosa, quando o tocador de música me sugeriu sua versão do clássico "Tareco e Mariola", canção de Flávio José, em uma playlist chamada “Nova MPB”. Na lista, Juliana figurava entre nomes como Liniker, Tulipa Ruiz, Luedji, Bala Desejo, Gilsons e vários outros artistas dessa recente e potente safra musical.
O que me impressionou nesse primeiro contato é que era possível sentir a força da interpretação de Juliana só de ouvi-la. Quando descobri que também é atriz, entendi tudo. Juliana mastiga as palavras, arremessa suas canções com a força de um soco e é capaz de devorar você com um olhar faminto de arte, em uma performance potente.
E trato de escutar seu disco Nordeste Ficção inspirado no livro de Durval Muniz. Juliana traz em suas músicas um Nordeste plural, quebrando o estereótipo regionalista, teimando em ser diferente de tudo o que esperam de uma nordestina, nas letras, nas melodias, nas roupas, no cabelo, na interpretação.
Gosto de ver gente teimosa, porque me identifico. Gosto de ver gente que dá cara a tapa e prova que o Nordeste é muito mais do que pensam e Juliana chega propondo outros significados de ser Nordeste.
O álbum tem um repertório rebuscado, inspirado em nomes como Elba Ramalho, Cátia de França, Amelinha, Belchior, Ednardo, Rodger Rogério, Fagner, Chico César, Alceu, Zeca Baleiro, Khristal e Tom Zé. Juliana, junto com Durval, chegaram me instigando a pensar: Que Nordeste posso inventar amanhã? Quantos nordestes eu conheço pelo olhar dessas referências musicais?
Nesta quinta-feira (24), às 19h, no Cineteatro São Luiz, talvez tenhamos essas resposta. Assistam o show Nordeste Ficção de Juliana Linhares e depois me contem que Nordeste vocês viram.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor