Às 20h30, na residência estreita e comprida do pé da ladeira de pedras que termina na estátua, um punhado de gente acotovela-se numa sala com paredes cobertas por quadros de santos.
Pelo corredor que vinha da cozinha, já era possível ouvir os rezos e ver o cocar no topo das fardas feitas de fibra de caroá, planta da Caatinga.
Os Praiás, as entidades da cosmologia dos indígenas Pankararus, fariam o seu espetáculo sagrado em Juazeiro do Norte.
Quem teve a sorte viu, ouviu e sentiu. Porque ninguém avisa a hora do Toré. É mistério, como dizem os indígenas. E os Praiás não gostam de muita conversa.
Já no cômodo apinhado, os Encantados, como também são chamados, começavam a sua dança em círculos e movimentos lentos, entoando rezos, sob o comando de sacerdotes sem o manto que fumam cachimbo e de beatas penitentes usando tecido branco da cabeça aos pés e chacoalhando maracás.
"Eles clamam muito pela Mãe das Dores, Padre Cícero", afirma a comerciária Antônia Gomes, que chegou perto dos Praiás.
A bibliotecária Naiane Cavalcanti aproximou-se ainda mais, entrou na roda e recebeu a reza:
"Foi uma experiência incrível! Fiquei muito leve, muito tranquila. Firmei pensamentos positivos."
A reza é procurada por pessoas de todas as idades e gêneros, seja para pedir proteção, livrar do que chamam de mau olhado, curar enfermidade ou mesmo por curiosidade e misticismo.
Para a cabeleireira Romana Célia dos Santos, esse era o segundo encontro com as entidades Pankararus.
"Graças a Deus fiquei curada. [Ano passado] sentia muitas dores no corpo todo porque estava com sequela da covid. Depois que eles rezaram, eu fiquei bem."
Perguntada sobre a religião que segue, a cabeleireira afirmou ser espiritualista. E é assim a casa de Madrinha Dodô, beata romeira já falecida que comprou essa residência na ladeira do Horto para abrigar gratuitamente os romeiros.
Quem estudou o que acontece nessa casa diz haver nela um fluxo de crenças, uma teia de fé que só o catolicismo popular de Juazeiro do Norte é capaz de tecer.
Os Pankararus fazem parte dela. A terra indígena fica no sertão pernambucano às margens do rio São Francisco. Toda Romaria de Finados, vêm a Juazeiro do Norte. E a maioria fica na casa de Madrinha Dodô.
Quem os recebe e zela é a rezadeira Dona Izabel, uma das últimas beatas da Irmandade de Madrinha Dodô, hoje responsável pela casa em Juazeiro do Norte, a quem este colunista agradece pela doçura do café e das boas-vindas.
Neste 1º de novembro, é celebrado o Dia dos Romeiros. Quem, na noite anterior, acompanhou o Toré entendeu o quão são plurais os corpos e a mentes de quem tem em Juazeiro do Norte a Terra Santa dos Novos Tempos, onde o multiculturalismo e o respeito são capazes de ocupar um espaço minúsculo em paz.