Dia Internacional dos Povos Indígenas, que resistem do Ceará ao Japão e tentam 'adiar fim do mundo'

Data global procura visibilizar lutas e experiências que unem esses povos minoritários e tentam garantir o direito à existência e à autodeterminação

Legenda: Indígena Pitaguary, no Ceará, aprende a essência da pintura corporal indígena
Foto: Ismael Soares

No início dos anos 2000, eu acompanhava muitas das programações culturais, exibições e atividades do Centro Cultural Dragão do Mar. Não consigo precisar em que evento ou encontro vi esta apresentação específica – a memória levou o momento, mas deixou a marca – uma dança Ainu, um povo indígena que nunca tinha ouvido falar. Eram indígenas do Japão!

Eu ainda começava a entender a multiplicidade dos indígenas brasileiros para além dos Tupis e Guaranis dos livros didáticos. Fora isso, o máximo que chegávamos nas aulas eram “índios” dos EUA. E de repente apareciam improváveis "índios" do Japão. Aquilo me fascinou e provocou, era um universo todo novo.

Falemos um pouco dos Ainu

Legenda: Homem em Hokkaido, no Japão, vestindo traje tribal tradicional do povo Ainu
Foto: Shutterstock

Temos uma visão tão estereotipada do Japão e dos japoneses, de sua tradição e antiguidade, que não lembramos que sempre existe um antes, sempre há outros possíveis. Os Ainu vivem principalmente em Hokkaido, até onde sabemos são seus mais antigos habitantes. Na formação do Japão Moderno, eles foram oprimidos e marginalizados pelo domínio imperial nipônico.

A história Ainu passou por crueldades e violências físicas e simbólicas, foram forçados a trabalhar na agricultura para atender o estado dominante, a abandonar suas formas tradicionais de pesca e produção. Foram obrigados a adotar nomes japoneses, falar a língua japonesa e foram lentamente despojados de sua cultura e tradições.

Estigmatizados e marginalizados, muitos Ainu escondiam sua ascendência. Atualmente, a população Ainu permanece empobrecida e politicamente excluída, grande parte de seu saber ancestral caiu ante a assimilação colonial. 

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Isso lembra alguma coisa? Esse apagamento, essa perseguição, essa necessidade de negação da identidade como condição para existir? Saber dos Ainu me fez pensar nos muitos mundos e experiências que eu desconhecia e nas várias formas de viver que simples e/ou deliberadamente ignoramos e silenciamos, por ação ou descaso. 

Por isso é importante pensar no 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas. A data global de celebração e resistência foi uma conquista de diversas frentes de povos originários junto à ONU e procura visibilizar lutas e experiências que unem esses povos minoritários e tentam garantir o direito à existência e à autodeterminação dessas diversas etnias.

O Brasil tem uma história de violências e crueldades indizíveis contra nossos povos originários, mas não somos exceção, esse processo se impôs ao redor do mundo na expansão industrial e imperialista dos últimos séculos. Povos não assimilados pela lógica dominante eram simplesmente descartados. 

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), as mais de 5 mil culturas originárias que resistiram à globalização industrial estão entre os grupos mais vulneráveis do mundo, sendo 15% dos pobres globais.

Esses grupos possuem menor expectativa de vida, suas mulheres têm maior probabilidade de sofrer discriminação e violência, com uma a cada três sendo agredidas sexualmente durante a sua vida. Essa marginalização e violência é atual, histórica e contínua.

“Que a nossa utopia seja um futuro na Terra”

Mas o PNUD nos traz outros dados importantes. Os povos indígenas são fundamentais na luta contra a mudança climática. Comunidades e áreas indígenas são líderes na proteção do meio ambiente. A relação com a terra é orgânica e indissociável, como a experiência Yanomami no Brasil de 2020 a 2022 evidenciou calamitosamente. 

Em 2021, a líder indígena brasileira Txai Suruí discursou na COP 26, em Glasgow, Escócia. Apesar de jovem, ela se apresentou como a continuidade de um povo milenar da floresta Amazônica. Em uma fala direta, objetiva e marcante, ela chamou atenção para o protagonismo ambiental dos povos indígenas em escala global e declarou:

"Hoje o clima está esquentando, os animais estão desaparecendo, os rios estão morrendo, nossas plantações não florescem como antes. A Terra está falando. Ela nos diz que não temos mais tempo."

Agências internacionais nos preparam para viver o período mais quente da história. Crescem os números de mortes, desastres e refugiados climáticos, os casos são mais intensos e se acumulam numa escala avassaladora. Um estudo recente da revista científica Nature apontou 100 praias com maior risco de serem engolidas pelo avanço do mar, devido às mudanças climáticas.

A 14ª praia da lista é brasileira, é a nossa bela praia de Morro Branco e suas falésias tão belas quanto frágeis. 

Pensando nas possíveis perdas que vivenciamos e na velocidade dessa devastação, volto a Txai Surui e repito sua afirmação – "não é 2030 ou 2050, é agora!" A natureza nos obriga a buscarmos uma nova relação ou a reatarmos antigas relações rompidas pelo sistema que nos trouxe, para o bem e para o mal, ao momento atual.

Dessa forma, essa data não é apenas mais um marco de almanaque, é um chamado para a multiplicidade. Nosso modelo industrial tecnicista trouxe inovações e avanços inegáveis, mas seu preço já está superinflacionado e não estamos nos importando com a conta que está a chegar. Essa é a última chamada para redefinirmos nossas rotas. 

Os Ainu no Japão, os Inuit no Canadá, cada nação indígena brasileira é escola de sobrevivência, de resistência e de existência sustentável. No dia de pensar nestes povos globalmente, temos dois caminhos igualmente importantes e significativos ao refletir os povos originários: pensar na equidade social e/ou na urgência ambiental.

Se não conseguirmos entender a importância de proteger os menos favorecidos, se não pudermos ser convencidos pela justiça e pela dignidade, que o façamos ao menos pela sobrevivência. 

Pela última vez, volto à fala de Txai: “os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática, por isso devemos estar no centro das decisões que acontecem aqui. Nós temos ideias para adiar o fim do mundo.”

Que o Dia Internacional dos Povos Indígenas seja, então, o dia de tentar adiar o fim do mundo.