Estamos perto do aniversário da vovó. Ela já se foi há alguns anos, teve Alzheimer. Uma doença horrível, triste, que faz quem a gente ama se esquecer de nós (existe dor maior que essa?).
Papai e mamãe tiveram um casamento muito difícil. E era na vovó que a gente ficava. Ela dava pra gente 2 reais pra comprar bombom, e a gente corria na rua pra gastar tudinho (2 reais era muito dinheiro).
Quando ela dava 5, a gente comprava um monte de pão e chocolate pra comer o dia todo, brincando no balançador, depois de pedir uma graça a Nossa Senhora.
A vovó tinha um galinheiro. Quando a gente queria brincar de esconde, as galinhas nos entregavam. Uma vez, uma delas pulou na mesa de jantar. Ô vovó, a gente nem sabia que ia sentir falta da galinha ter acabado com o dia.
Aos domingos, íamos para o sítio. A gente passava o dia na piscina. Tinha capelinha, porco, carneiro, galinha. Uma árvore secreta, pé de limão e um pé de seriguela: eu odiava seriguela, mas eu amava pegá-las.
Nem sempre era fácil estar em família. Mas engana-se quem pensa que o amor é apenas felicidade. É próprio do amor o abaixar, o sacrifício. E eu aproveitava tanto aquilo como se eu já soubesse que ia acabar. E acabou.
Acabou, vovó.
Mas dizem que passado e presente se misturam e que eles são apenas impressões nossas - que formam um ciclo. Hoje estou grande, vó. Alguns sonhos - daqueles que conversávamos quando eu deitava no seu colo - aconteceram.
Outros não, eles ficaram naquele tempo. Foram vividos, de certa forma, pelo menos por terem sido desejados. As galinhas se foram, o balançador caiu, o sítio foi vendido e uma grande parte do meu coração foi embora no dia que você esqueceu meu nome. Mas, se Deus quiser, nunca esquecerei o seu.
A presença física não representa nem metade do que significa a presença da alma. “Bença vó” seguido do seu cheiro. Ele permanece. Mesmo que alguém use o mesmo perfume, a sua pele não existe mais e esse perfume nunca esteve à venda. Obrigada por ensinar caligrafia e por nos acolher quando o papai e a mamãe brigavam.
Um golpe tão duro quando alguém se vai, sempre me lembra um trecho de Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa:
"O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia..."
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.