Quando a gente começa a terceirizar os sonhos?

Legenda: Tantas vezes acontece de maneira tão inocente que nem parece que estamos repassando nossos sonhos, mas estamos
Foto: Resiak/ Shutterstock

Piano. Botei na cabeça que vou colocar a Manuela, minha filha de 8 meses na aula de piano. Não agora com meses, mas um dia, ainda pequena.

Primeiro porque é muito bom aprender a tocar música, alguém um dia falou que “música é a expressão da alma”. E segundo porque eu sempre quis aprender. Ora, ora o que temos aqui? Uma mãe espirrando nos filhos os desejos não realizados.

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Não dá pra criar expectativas sobre os filhos, do que vão gostar ou não. O que dá é pra apresentar o que julgo ser um presente pra ver se a Manuela vai receber e usufruir. Mas o mais impressionante disso tudo: eu, no auge dos meus 35 anos, novíssima, tenho repassado meus sonhos pra alguém. Como se não desse tempo, como se não houvesse mais chance, como se fosse tarde demais.

É verdade que esse alguém é minha filha e que mesmo que eu tivesse parido com 20 anos, ainda repassaria alguma coisa pra ela, o que achasse que seria bom. Não fujo da regra das mães.

 Mas com o tempo vêm os filhos a quem colocamos como protagonistas, vem a sociedade nos dizer que é tarde demais, vem o mundo dizer que que agora somos coadjuvantes porque o que bomba hoje parece pertencer mais a nova geração.

De alguma maneira, vamos sendo reféns de nós mesmos, nos perdendo, não pertencendo.

 E quem poderá nos culpar? O tempo que desgasta, o tempo que vai guardando em si as feridas de todos esses anos de vida, a gente se entrega mesmo tantas vezes, até nos nossos sonhos mais possíveis. A gente cansa até de aprender parece. E tantas vezes isso acontece de maneira tão inocente que nem parece que estamos repassando. Mas estamos.

A gente se ama, se gosta, vai pra academia ou não, vai pro trabalho no escritório ou trabalha de casa mas aqueles nossos desejos, por falta de tempo ou por falta do protagonismo, porque nos convenceram que éramos velhos demais, esses a gente deixa tantas vezes pra depois, pra outra pessoa, pros nossos herdeiros.

Minha mãe me teve com 36 anos. Não lembro quantos anos eu tinha, mas lembro claramente que ela sempre usava esmalte vermelho. Eu achava lindo, achava charmoso, achava o auge da vida adulta. Pra ela já eram 36 anos. Pra mim, as primeiras vezes eu a via. Tão linda, seria impossível pensar que ela tivesse repassando pra mim, tão nova, sonhos que aos meus olhos, parecia que ela estava vivendo. Como se fosse a vez dela de viver e a minha de crescer.

Hoje, de unhas vermelhas, tenho uma menininha em casa que me conhece há 8 meses e 1 dia. E eu, com quase 36, com a vida ainda no começo, no máximo no meio, acho que talvez deva aprender piano antes que ela perceba que quase passei todos os meus sonhos pra ela ao invés de também vivê-los.

Há dois dias procuro, com calma e segurança, aulas de piano pra adulto. 

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora