Ontem vi com espanto a notícia que o Supremo Tribunal Federal, depois de anos de labirintos jurídicos, decisões e repetições, julgamentos e re-julgamentos contraditórios, decidiu não reconhecer o direito de aposentados e trabalhadores ao que se chamou de “revisão da vida toda” – direito de aposentados incluírem salários antigos, pagos em outras moedas anteriores ao real, no cálculo de suas aposentadorias (e, com isso, terem a possibilidade de aumentar a renda mensal atual). Espanto maior foi ver que esta notícia não virou trend topic, foi constatar que esta perda histórica para a classe trabalhadora não repercutiu nas redes como outros fatos, notoriamente irrelevantes, como a recente expulsão de uma famosa de um reality show.
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Quem assistiu aos vídeos do final do julgamento, talvez não tenha percebido, ali, algo grandioso, mas apenas mais uma enfadonha questão jurídica sendo resolvida, com seu léxico técnico incompreensível para a maior parte da população. Talvez todo o juridiquês tenha distanciado o público, que parece não conseguir entender o momento trágico que ali tomou espaço. O clima na corte também não denunciava mais uma perda para os trabalhadores, por exemplo, o Excelentíssimo Ministro Presidente Luís Roberto Barroso abriu uma discussão, aos meus olhos supérflua, sobre a necessidade de substituir o adjetivo “literal” por “textual”, e citou Stendhal, o famoso romancista francês do Século XIX. Enfim, nada ali apontava para a derrota do trabalhador brasileiro. Entre piadas jocosas e uma aparente tranquilidade, nem parece que, naquele momento, apenas 11 julgadores decidiam o destino de milhões e milhões de aposentados, que, depois de trabalhar arduamente a vida inteira, tiveram uma esperança de que, com a “revisão da vida toda”, pudessem ter algum aumento real na sua renda mensal. Toda essa esperança, em apenas um dia de reviravolta jurídica, foi por água abaixo.
O que me espanta não é a decisão em si, mas o silêncio diante dela. Nossa sociedade atual, imersa na individualidade, na lógica algorimitizada e uberizada, esquece algo que historicamente sempre se fez muito claro: para além de nossa subjetividade, somos também parte de classes sociais. Para além de nossas famílias, de nossos hobbies pessoais, somos também uma parte de uma engrenagem coletiva. Somos trabalhadores, somos profissionais autônomos, somos concursados, somos aposentados; somos também consumidores, somos cidadãos, somos brasileiros; somos parte de uma grande massa de pessoas que, com direitos e deveres em comum, têm potencialmente um poder de reivindicação enorme.
Deveria nos causar revolta a rasteira jurídica que o Supremo Tribunal Federal deu contra os aposentados nessa quinta-feira, dia 21/03/2024. Deveria ser um dia de revolta, de manifestações, de pressão social – não só daqueles que já estão aposentados, mas, também, daqueles que trabalham e que querem se aposentar. Ao invés disso, vejo manifestações difusas, sem pautas coletivas, muitas vezes ilusórias. Manifesta-se em prol da “família”, manifesta-se contra o “patriarcado”, mas não se manifesta mais contra os ataques aos direitos dos trabalhadores (que afetam toda a coletividade); manifesta-se em favor de Bolsonaro, manifesta-se em favor de Lula, mas não há qualquer comoção quando o direito à aposentadoria, que deveria ser de todos, é estraçalhado por reformas, alterações legislativas e decisões de tribunais; manifesta-se em favor do “voto impresso”, manifesta-se em favor do direito à liberdade de expressão de grupos minoritários, mas não se manifesta contra a isenção de impostos a grandes fortunas e à tentativa de reduzir direitos do consumidor. As pautas identitárias lotam as avenidas. Na parada LGBTQIAPN+ há um mar de gente; na recente marcha em apoio ao ex-presidente Bolsonaro vimos a Avenida Paulista lotar. Enquanto estava preso, Lula levou multidões ao entorno do presídio. Se Bolsonaro for preso, certamente milhares farão vigília em seu cárcere. Entretanto, nos últimos anos, não consigo lembrar de nenhum 1º de maio que tenha lotado avenidas. As pessoas têm esquecido que são trabalhadoras.
A quem interessa, portanto, que tenhamos perdido a noção de classe? A quem interessa que não nos vejamos mais como classe trabalhadora, ou classe aposentada, ou classe consumidora, mas como alguém “individual”, como alguém que “basta querer para vencer”, alguém para o qual “o céu é o limite”? A quem interessa fomentar que somos “únicos”, “irrepetíveis” e que o mérito individual é o que há de mais importante? Certamente, essa mentalidade não nos favorece. Favorece a outros, a um sistema que explora o trabalho, o consumo, as aposentadorias. Favorece que decisões absurdas sejam tomadas sem que haja nenhuma comoção social, nenhuma pressão.
O silêncio da população e dos meios de comunicação diante da decaída da revisão da vida toda denuncia nossa apatia social, nossa cegueira e ausência de consciência de classe. Deixo aqui minha solidariedade aos aposentados, infelizmente, com Kafka (e não Stendhal) ressoando em meu coração: “Há esperança, esperança infinita, mas não para nós”. Nos vemos nas ruas vazias de 1º de maio.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.