Após longa internação, Ednardo planeja lançamento de músicas e livro
Já em casa, o cantor prepara um EP de letras inéditas além do livro que reúne crônicas, poesias e ilustrações
No final do mês de agosto, muitos cearenses se assustaram com uma notícia nada agradável. O cantor Ednardo, um dos grandes mestres da música brasileira, havia sido internado em um hospital de Fortaleza para tratar um quadro de infecção.
Muitas foram as especulações sobre seu real estado no decorrer desses mais de quarenta dias. Fiquei com o coração aflito. A paz só veio quando soube da sua alta no último dia 9 de outubro. O que eu não imaginaria (ou talvez soubesse, mas não tinha dimensão) era que o nosso eterno “Pavão Mysteriozo” é incansável e já prepara novidades.
Antes da Pandemia, o cearense já havia entrado em estúdio para mais um trabalho. O EP, com nome provisório de “Hum ano”, leva já o espírito livre de Ednardo pelo título e está em fase de finalização. O trabalho contará com duas músicas inéditas do artista, uma prévia de outras canções que também estão sendo desenvolvidas para um trabalho posterior. Aguardemos!
Outro presente que está sendo cuidadosamente organizado pela Julia Limaverde, filha do cantor e também sua produtora, é um livro com outros talentos do artista e que terminaram por se tornar desconhecidos do grande público.
Ainda sem data para lançamento e aguardando patrocínio, as crônicas, poesias e ilustrações de Ednardo devem ganhar forma neste exemplar inovador. A catalogação mostra várias fases do artista em suas eternas e sensíveis catarses que marcam sua obra e trajetória. Prometem levar o olhar do compositor diante a poesia que é o caos cotidiano. A essência de um Ceará repleto de identidade.
Falar de Ednardo é uma responsabilidade enorme. Seu canto comunga com uma revolução de pensamentos. Saudosista, trovador, romântico, questionador, sua música resplandece como um grito aos quatro ventos o quão diverso é ser cearense.
Sua pluralidade de sons, cores e utopias, ecoa como um inventor do passado trazendo a nossa cultura tão enfraquecida pelo tempo e apagada pela modernidade.
“O Pessoal do Ceará”
Adolescente na Rua Arthur Timóteo no bairro Joaquim Távora, em Fortaleza, Ednardo sempre teve uma ligação muito forte com a música. Quando criança estudou piano, mas foi fazendo serestas nas janelas das donzelas da cidade que virou companheiro do violão.
Outro costume do jovem era assistir a filmes no Cine Diogo, localizado no Centro da capital, e foi lá que recebeu o seguinte convite: “estou montando um bar lá em casa, fica na Av. Beira Mar, passa por lá qualquer dia”. O chamado era do ascensorista do local, Anísio Muniz de Sousa, ex-pescador e um perene amante do mar, que teve um dia a ideia de transformar a casa em um restaurante improvisado.
Por suas condições, o "Bar do Anísio" virou um ambiente de liberdade frequentado principalmente por estudantes universitários. No local, Ednardo encontrou nomes como Fausto Nilo, Rodger Rogério, Teti, Petrúcio Maia, Ricardo Bezerra, Antônio Carlos Belchior, dentre outros. Foi por lá que ele compôs músicas como “Carneiro” com o publicitário Augusto Pontes e “Alazão” em parceria com o até então estudante de arquitetura Antônio Brandão.
Nas mesas dos bares, e sob o olhar de Iracema, aqueles jovens almejaram sucesso e viram que a música ia além de um simples canto. Era ideologia e naquele momento precisavam de uma para viver. Nos anos seguintes, compuseram o grupo “Pessoal do Ceará”, mostrando para o Brasil que aqui também se faz (boa) música.
Acima de tudo um cearense
Mesmo bebendo da fonte Tropicalista, de que, por vezes, se mostrava opositor, Ednardo comungava da psicodelia do gênero, mas ao contrário dos baianos, trouxe a cearensidade e sempre viu a obrigação de ser um meio de resistência da cultura popular do Estado.
“Eu venho das dunas brancas de onde eu queria ficar” é um trecho de “Terral”, grande sucesso que se tornou um hino da música fortalezense. Composta no início da sua carreira, a canção possui desde o título (terral significa vento que sopra da areia em direção ao mar) até o restante da letra elementos pertencentes a nossa topografia e história, como a Praia do Futuro, o Farol do Mucuripe, o Bairro Aldeota e termos como o “aperrear”, comum do linguajar cearense.
Outro marco de sua arte dentro da identidade cearense é o álbum “Berro” lançado em 1976. Além da capa icônica, o disco mais parece um livro de crônicas, homenageando, por exemplo, a revolucionária Bárbara de Alencar, na faixa “Passeio Público”, os intelectuais da Padaria Espiritual no contagiante “Artigo 26” ou a antiga e pacata Praia de Iracema na saudosa “Longarinas”.
Mesmo quando o Ceará não se faz presente nas letras, os ritmos de suas melodias o carrega. “Pavão Mysteriozo”, por exemplo, levou para todo Brasil a chamada batida do “Maracatu cearense” como tema principal da novela Saramandaia na TV Globo (nos idos dos anos 70) Podemos mencionar que ainda nesse disco o artista lança “Água Grande”, no qual conta a história de um retirante que ao ver a correria de uma avenida paulista lembra da Praia de Iracema e chora de saudade.
A audácia de Ednardo é tanta que em 1979 foi o organizador do “Massafeira Livre”. Chamado como a semana de arte moderna cearense, o movimento levou em três noites de espetáculos no Theatro José de Alencar -- o que há de mais plural e democrático dentro da nossa cultura. Nos espetáculos foram lançados nomes da música como Calé Alencar, Stenio Valle, Marta Lopes e Mona Gadelha, além de exaltar antigos ícones da cultura popular, dentre eles o poeta Patativa do Assaré.
Ednardo é fênix e renasce a cada momento. Aliás, ele é Fortaleza, e assim como seus versos, “teima resistindo”. O seu existir é um sinônimo de resiliência diante velocidade do tempo. É o compositor da renda, da cerâmica, da rede, do maracatu... É a união do litoral com sertão sem esquecer a serra. Representa a história de cada um de nós nascidos nesse chão de bravura e dignidade tido como propriedade do sol...
Saindo do leito de um hospital para voltar às manchetes. Ednardo desafia o mundo. Aos 75 anos prova que assim como a arte também é imortal. Os mais de 50 anos de carreira nos fez bem. Ele deixa a expectativa dos seus sonhos futuros que, assim como sua vida, irá nos surpreender e delirar. Vida longa ao nosso Pavão Mysteriozo, em seus vôos ousados e sublimes.