Você já lacrou hoje?

Foto: shutterstock.

Não sei sobre a sua rotina, mas na minha, o exercício da lacração é parte do cotidiano. Uma boa noite de sono, acordar, tomar café, meditar, ouvir Gal no Spotify, abrir o Twitter para me inteirar da treta atual (da qual posso fazer parte ou não) e vibrar com ataques mútuos, escolher um lado, aplaudir cada “esmurrou”, “pisou”, “jantou”, “comeu sem pena” e, para usar o termo da vez, “macetou”, que o lado que escolhi me proporciona ao humilhar o adversário. Sigo o dia me alimentando das doses de adrenalina das atualizações e dessa indelével sensação de justiça feita que só a efemeridade das redes sociais proporciona.

Ironia à parte - aliás, deboche é uma coisa que você deve usar sem qualquer parcimônia numa discussão, a fim de ridicularizar o seu oponente ao máximo e fazê-lo parecer o mais miserável possível -, o turbilhão do lacre quase me faz esquecer umas perguntas: perdemos a capacidade de discutir sem espezinhar? Sem salivar com a intenção de destruir o outro? Sem reclamar da polarização, ao mesmo tempo que nos posicionamos contra algo|alguém usando palavras bem escolhidas misturadas a pólvora e gasolina? Sem incitar a onda de ódio, a mesma pela qual lamentamos tanto quando somos nós (ou nosso lado) o alvo?

Nos últimos dias me peguei curtindo uma sequência de posts - no Instagram e Twitter - sobre as últimas tretas envolvendo famosos. Na ciranda de ter um lado e depois mudar de lado e depois mudar de novo, vibrei com respostas, esmurradas, tiros, macetadas, jantadas até que, quando o pico se dissipou, me peguei patética, com aquela névoa fantasiosa que a sequências de likes e emojis na Internet causa. Como dar uma festa e receber milhares de cartões de felicitações e ninguém aparecer de fato.

No meio do caminho, pensei: “O que eu estou fazendo aqui? Por que estou afundada nessa sequência de humilhação mútua, prolongada até o último fio pelo público, vulgo eu mesma? Por que me divirto com esse ringue em que a alegria é ver quem esmurra mais? O que exatamente eu estou celebrando?”. E me vi ali, cansada dessa performance em que ninguém está minimamente interessado em conversar, mas em calar o outro, emudecer alguém, em estar por cima, em ser aplaudido, ovacionado, em ver os números de likes e seguidores crescendo exponencialmente, matando a sede da audiência, alimentando o ego da melhor resposta, aquela que rende manchetes em jornais e medalha nenhuma.

Todo mundo quer vencer sendo mau jogador. Na ânsia absoluta de pisar, esquecemos que tem alguém do outro lado. Esquecemos, inclusive, dos argumentos que fariam a discussão menos violenta, menos contra aquilo que dizemos condenar nas redes. Afinal, não tem como lamentar ódio e polarização jogando ódio sobre o ódio, incentivando o escárnio sob o pretexto de se defender, defender a própria opinião ou o que acredita.

Se eu fosse famosa ou relevante, este texto aqui sofreria represálias. Uma onda de ofensas e xingamentos sendo jogadas sobre mim por conta da proposta de uma discussão não baseada em ofensas e xingamentos. É assim que funciona a discordância. A réplica de alguém ganharia mais likes que meu texto. Eu seria a imbecil que não quer que ninguém se expresse livremente. Iriam atrás da minha família, xingar meu irmão, rir do meu companheiro, humilhar o meu trabalho. Trariam à tona tuítes do ano passado em que despejei ódio (certamente o fiz mesmo) para dizer “que cínica”. Espalhariam fotos da minha barriga saliente e me chamariam de gorda ou de feia, ou de gorda e feia. 

Diriam pra eu operar o nariz. Debochariam das minhas convicções políticas. Eu iria chorar num cantinho e me arrepender de um texto escrito com alguma boa intenção, me acharia burra, infantil e estúpida. Escreveria uma tréplica raivosa para não ficar por baixo, mesmo já estando, para ganhar mais likes que a réplica. Horas depois, tentaria disfarçar a mais absoluta exaustão, porque, enfim, lacrei e isso basta.

E no fim do dia, como sempre, me daria conta de que sou parte do que vejo diariamente nas redes sociais: um mar de gente machucada festejando o fato de fazer o outro sangrar primeiro.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.