Onde se bebe o vinho não se deve ganhar o pão

Foto: Shutterstock

Depois de anos escrevendo em casa, decidi separar de novo os territórios do lar e do trabalho. Aluguei uma sala, em prédio comercial, para onde transferi livros, estantes, arquivos, cadernetas de campo, painel de cortiça e computador de mesa. Levei junto uma máquina de café espresso e, como permanentes companheiros de jornada, uma estatueta de Padre Cícero em imburana e um pequeno busto de Getúlio Vargas em bronze.

Veja também

Antes, amigos me diziam invejar o fato de eu trabalhar em casa. Cobiçavam a conveniência de ter o escritório a poucos passos da cama ou geladeira. A comodidade de não precisar pegar trânsito, a fantasia de labutar o dia inteiro de moletom e chinelos. Assim, estranhavam quando eu lhes dizia precisar, desde sempre, colocar calça, camisa e sapato para conseguir escrever, mesmo sem a necessidade de pôr os pés lá fora.

Veio a pandemia, o necessário isolamento social, o teletrabalho compulsório para muitos. O suposto fascínio com o home office desvaneceu-se, dizem-me agora os mesmos que sonhavam eternizar o escritório remoto num puxadinho da sala ou do quarto. A tal síndrome de Burnout — a extrema fadiga provocada, entre outros fatores, pela intromissão da vida profissional e das múltiplas telas no cotidiano familiar — quebrou o encanto.

No meu caso, depois de dezenas de lives, videoconferências e reuniões pelo Zoom, a claustrofobia veio em dobro. Já tinha planejado separar as fronteiras de onde ganho o pão e bebo o vinho. O computador de mesa ligado o dia inteiro era uma tentação para esticar o expediente de forma indefinida. Não mais. O notebook fica desligado, dentro da bolsa a tiracolo, e só acionado em caso de urgente necessidade. Com as notificações do celular desligadas, radicalizei o minimalismo digital como regra doméstica.

De manhã cedo, acordo, tomo café, leio os jornais, ponho a máscara de proteção e sigo ao trabalho. A sala alugada fica a quatro estações de metrô. O prazer de ver a cara do dia, conferir a luz do sol ou o nublado do céu, tudo isso revigora o espírito, renova a alma. Ao chegar, fecho a porta, preparo a primeira xícara de espresso, cumprimento Getúlio e Padre Cícero, sento à escrivaninha. O texto flui.

Propus-me o compromisso de concluir e entregar dois livros ao meu editor ao longo deste ano — um deles, um manual sobre a escrita biográfica; outro, uma biografia propriamente dita. Com o ritmo e o poder de concentração que o novo escritório me oferece, creio ter condições de honrar a meta. Adriana, que divide comigo o aluguel da sala, também tem planos ousados para o período.

Na vidraça, a vista dá para antigos casarões, tão típicos ao Porto, com suas fachadas de pedra e azulejo, vastas portas e janelões de madeira pintada, balcões gradeados de ferro, claraboias de vidro sobre os telhados. Aqui dentro, o silêncio e as paredes tomadas por estantes e livros convidam ao exercício da escrita. Organizo os arquivos, ponho anotações em ordem, mergulho no trabalho.

Mais tarde, ao anoitecer, iremos para casa. Beijaremos nossas filhas que terão chegado da escola pública após o dia inteiro de aulas, prepararemos o jantar, abriremos uma garrafa de vinho, brindaremos aos novos livros que estão por vir. O mundo anda difícil; os tempos, turbulentos. Mas escrever é, sim, uma forma de resistência, um pacto com a reconstrução coletiva do futuro.

Faz escuro, mas eu canto, já ensinava o saudoso poeta.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.