Por uma história da fome no Brasil

Legenda: Como é possível que ainda não se tenha feito uma história da fome no Brasil?
Foto: Fabiane de Paula

Na cerimônia de lançamento do livro Querido Lula: cartas a um presidente na prisão, ocorrida no teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), foram lidas vinte e cinco cartas entre as quarenta e seis selecionadas, entre as vinte e cinco mil que o ex-presidente recebeu, para constar no livro. Na maioria dos relatos, feitos por homens e mulheres de diferentes estados e municípios do país, um elemento sempre se fazia presente: a fome. Na trajetória da maioria das pessoas que nascem nesse país há o encontro com a fome, permanente ou episódico, desde que nasce ou à medida que a vida decorre.

Mas as cartas eram também lindos testemunhos acerca das estratégias de luta contra esse flagelo, das formas as mais criativas de burlar a presença desse fantasma, empreendidas pelos mais pobres e miseráveis. Sobretudo a luta das mulheres, das mães para não ver seus filhos chorarem de fome, para ter algo para colocar no fogo e na mesa na hora das refeições.

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Como no emocionante relato feito pelo potiguar Lucas Ribeiro, da comunidade de Santa Luzia, no município de Touros, em que narra como sua mãe, vendo que não havia comida para todos, arrumava desculpas, para ausentar-se da mesa, após servir os filhos. Quando os filhos terminavam de comer, às vezes ela comia o que sobrava, mas às vezes, quando nada sobrara, para disfarçar a fome, colocava café quente num prato e misturava com farinha, se alimentando de um pirão de café.

Ele conta ainda que, muitas vezes, tanto no café da manhã, quanto no jantar, a mãe improvisava um cuscuz com farinha de mandioca e leite de coco (aproveitando os únicos recursos que a natureza do local fornecia), um prato batizado de bofete.

Escutando aqueles relatos me pus a pensar, como é possível que uma experiência tão central e tão generalizada na vida da maioria dos brasileiros, praticamente não conste em nossos livros de história do país? Como é possível que ainda não se tenha feito uma história da fome no Brasil?

Ao contrário, influenciados pela historiografia europeia nos pomos a fazer história da alimentação no Brasil, aquilo que é um privilégio de dados setores da sociedade e que não costuma, mesmo quando aborda as camadas populares, trazer a fome, a falta de alimentação para o centro da narrativa. Muitas vezes se folcloriza as comidas populares, aquelas comidas que são para momentos excepcionalíssimos como casamentos, batizados, rituais religiosos, tomando-as como se fossem de consumo cotidiano e permanente.

Somente o caráter colonizado da historiografia brasileira explica o fato de que nossos historiadores não tenham até hoje se dedicado a estudar a fome, talvez por vergonha, talvez por não achar um tema digno de ser estudado. Quase um século depois, os estudos pioneiros do médico, nutrólogo, sociólogo e geografo pernambucano, Josué de Castro (1908-1973), sobre o problema da fome no país, ainda não encontrou continuadores entre os historiadores.

Os seus dois livros clássicos, Geografia da fome, publicado em 1946 e Geopolítica da fome, publicado em 1951, foram antecedidos por vários estudos sobre as más condições alimentares das classes trabalhadoras da cidade do Recife, desde o início dos anos 1930.

Se percorremos os quatro volumes da História da vida privada no Brasil, dirigida pelo historiador Fernando Novais, coleção publicada entre os anos de 1997 e 1998, veremos que a fome, uma presença constante e marcante no cotidiano da maioria das famílias brasileiras, não é tratada em nenhum dos volumes. Historiadores que tanto criticaram a visão aristocrática da história do país formulada por Gilberto Freyre (1900-1987), ao reproduzirem no país uma proposta historiográfica e editorial francesa, parecem enxergar o país, a vida privada brasileira, com uma mirada europeizada e de classe média.

No livro História das mulheres no Brasil, organizado pela historiadora Mary Del Priore, também publicado em 1997, como uma versão brasileira da proposta editorial francesa, o papel central das mulheres, das mães na luta contra a fome, não se faz presente. As mulheres pobres aparecem em mais de um capítulo, ligadas ao mundo do trabalho, sejam como escravas, sejam como colonas ou boias-frias, mas a experiência da fome e as estratégias de sobrevivência para enfrentá-la mais uma vez queda ausente.

O caráter colonizado de nossa historiografia, que se explicita nessa reprodução de projetos editoriais, de temáticas de estudo, na reverência constante aos autores estrangeiros, faz com que a pesquisa histórica, no país, tenha demorado a tratar, tenha ignorado, por muito tempo, temáticas centrais à sociedade brasileira, como o carnaval, o futebol, a saudade, etc.

Ficamos reproduzindo as temáticas estudadas por autores europeus e norte-americanos e negligenciamos aqueles aspectos de nossa história que nos definem mesmo como sociedade, como é o caso da fome, do sofrimento dos corpos, da violência contra as carnes consideradas subalternas.

Esse acervo de cerca de vinte e cinco mil correspondências, que está digitalizado e disponível no Instituto Lula, é um material indispensável a ser trabalhado pelos historiadores, pois ele remete às entranhas da história desse país, é a história do Brasil contada por muita gente das camadas populares, gente que conseguiu acesso a educação, que conseguiu poder se expressar, construir memórias de vidas e percursos que dificilmente seriam registrados e arquivados.

Esse material permitirá que enxerguemos o alcance de problemas como a fome, mas também da violência doméstica, das taxas de abandono paterno, o papel de avós e idosos como cuidadores das crianças, a violência policial, o racismo, o preconceito contra o pobre, a homofobia e tantos outros temas a merecer uma centralidade nas narrativas sobre a história do país.

Essa documentação é rara porque não é comum que alguém que passou ou passa fome fale sobre o assunto. As pessoas sentem vergonha de sua miséria, temem ser responsabilizadas por sua própria penúria, temem ser acusadas de preguiçosas ou vagabundas. Aqueles que escreveram para Lula, se sentiram à vontade para relatarem suas experiências de fome, porque sabiam que o presidente já havia vivido a mesma situação, ele as entenderia, ele nãos as julgaria. Foi ele que colocou a fome como tema central no debate no político e na gestão pública. Ele tornou a erradicação da fome no país, essa chaga vergonhosa, que só não causa pejo em nossas elites insensíveis, o objetivo principal de seu governo. Ele retirou a fome do segredo da vida privada, de assunto que só se falava sussurrando ou quando já se atingira o estágio do desespero, para fazer dela uma temática central das políticas públicas.

Ao responsabilizarem os pobres por sua própria pobreza os discursos vindos das elites mascaram os motivos das desigualdades sociais e sua própria responsabilidade nisso. O discurso neoliberal tenta convencer quem passa fome que é ele o responsável por isso, porque não empreendeu o suficiente, porque não trabalhou o suficiente. As desigualdades estruturais da sociedade brasileira quedam assim mascaradas e legitimadas. O individualismo neoliberal considera a pobreza e a fome um problema que deve ser solucionado por cada um e não uma responsabilidade de toda a sociedade, daí todo o ódio destilado contra as políticas sociais.

Da mesma forma que para o presidente as pessoas que morreram com as enchentes não tiveram visão de futuro, ao construir suas casas e barracos nas encostas e margens de rios, sendo normal que essas mortes aconteçam, para o senso comum neoliberal a fome é fruto do déficit de empreendedorismo, de falta de iniciativa privada, quando ela é fruto da injusta divisão da renda, da exploração do trabalhador, da marginalidade de setores da sociedade, da falta de oportunidades e de possibilidades. O que as cartas também mostram é que, para quem está acostumado a viver com pouco, uma oportunidade por menor que seja pode ser o caminho para uma trajetória de superação da pobreza.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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