Nordeste, sertão: reservas de imaginação e de exotismo

A Rede Globo de Televisão anuncia que a sua próxima novela das 18 horas terá o Nordeste como temática e cenário. Num momento em que a Vênus Platinada, como no geral a TV aberta, vê seus índices de audiência declinarem, apostar no imaginário em torno da região Nordeste e, mais especificamente, em torno do sertão parece ser uma decisão acertada, já que as tramas passadas, pretensamente, nessas espacialidades tendem a contar com audiência garantida. O que nos leva a interrogar sobre o porquê do Nordeste e do sertão (essas duas categorias tendem a se sobreporem, o sertão sendo tomado como a metonímia do Nordeste, ou seja, a parte que vale pelo todo ou que dá sentido a totalidade) gozarem de uma fácil recepção, serem consumidos com tanta facilidade? Por que ambientar uma novela no espaço dito nordestino garante sucesso e aceitação imediata por parte do público que consome telenovelas?

Creio que o primeiro aspecto que devemos levar em conta é que, se na indústria cultural busca-se uma fácil recepção, uma identificação imediata do telespectador com a história e os personagens que estão sendo apresentados, novelas de temática nordestina é um prato cheio pela possibilidade infinita de lidar com lugares comuns, com clichês, com estereótipos, que circulam há muito tempo na cultura brasileira, sendo necessário apenas atualizá-los e reutilizá-los. A recepção é facilitada pela recorrência a fórmulas já consagradas pela própria teledramaturgia.

Existe uma tradição de narrar “histórias nordestinas e sertanejas” estabelecida pelas próprias novelas, pelos autores que escrevem essas tramas para a televisão e que sabem que certas fórmulas funcionam, que existe um conjunto de temas e personagens que são esperados pelo público quando se fala em locar uma trama nesse espaço imaginário chamado Nordeste e/ou sertão. Essas histórias, que são escritas para e vistas, preferencialmente, por um público urbano, citadino e, em sua maioria de outras regiões do país, satisfazem, todo dia, o desejo de exotismo, de bizarrice, de diferença, de alteridade desse público. Assistir essas tramas ditas nordestinas ou sertanejas reforçam a identidade, pretensamente, superior daqueles que vivem nas cidades e/ou em outros espaços do país.

Da mesma forma que europeus e norte-americanos se sentem bem e confirmados em sua superioridade civilizatória quando colocados diante de uma trama ou um drama terceiro-mundista que remete a falta de civilidade, a barbárie e a violência do sul global, aqui os nordestinos e sertanejos servem para reforçar, nos moradores das cidades ou de outras regiões, essa satisfação em saber que existe uma vida pior do que a deles, personagens mais caricatos, miseráveis e risíveis, mais bregas, truculentos ou violentos que aqueles que eles pensam ser.

O sertão e o Nordeste servem a dose de exotismo que todos procuram para se afirmarem em sua normalidade cotidiana, rotineira e banal. Esses personagens estranhos, que falam uma língua distinta, com um sotaque carregado e cômico, que têm corpos que são considerados fora de moda ou de época, servem para pacificar o espírito da telespectadora mais suburbana, mais empobrecida, de que existe aqueles que estão e são piores do que ela.

Mas outro motivo de tanta recorrência na abordagem desse espaço pela teledramaturgia é que ele é uma espécie de reserva de imaginação. O Nordeste e/ou o sertão são como telas brancas em que se podem projetar todas as fantasias, todos os fantasmas, todos os delírios, todos os sonhos. Esses espaços, dada a quantidade de imagens sobre eles projetados, ao longo da história cultural brasileira, surgem como uma arca de Noé, um chapéu mágico de onde tudo se pode tirar. Talvez pela ação do sol ou do calor sobre a moleira, talvez pela ideia de que são espaços arcaicos, primordiais, primitivos, o Nordeste e/ou o sertão servem de inspiração para a criação de imagens mirabolantes.

O Nordeste e o sertão abrem espaço para a projeção de imagens as mais exóticas e disparatadas. O imaginário presente na literatura de cordel, nos almanaques populares, nas cantorias e repentes, nas pelejas e emboladas de coco parecem permitir que se aloje nesses espaços todas as imagens que remetem ao desejo de retorno a um dado tempo, de nostalgia de um dado espaço, o desejo de um fora do nosso tempo e de nosso espaço. As novelas ditas nordestinas ou sertanejas oferecem essa possibilidade de viagem a um outro tempo, a uma outra realidade vistos como estando nas origens dos tempos em que vivemos.

O Nordeste e o sertão como outros, como alteridades radicais daquele que emite o discurso, que escreve o roteiro, são espaços perfeitos para a imaginação de eventos e pessoas fora do comum, para projetar comportamentos e atitudes, sentimentos foras do rotineiro, marcados pela diferença e pela singularidade. Como espaços pensados como inferiores e subalternos, sobre eles se pode projetar fantasias de poder sem peias, assim como de poderes perversos e fora do que é considerado normal. Assim como as classes médias projetam sobre os pobres e as periferias suas fantasias regressivas e perversas, suas fantasias de rudeza, violência, brutalidade, de sexualidade sem limites e sem pecado, os brasileiros de outras regiões e das classes dominantes do próprio Nordeste se aprazem com a ideia dessa região ou desse sertão onde suas fantasias de violência e perversão podem ser projetadas.

O Nordeste e o sertão seriam esses espaços dos segredos e dos mistérios da natureza e dos homens, esse espaço de fenômenos estanhos, do fora do comum, aquilo que vem dar um pouco de emoção e de aventura a vidas abastardadas, vividas do trabalho para a casa, do sofá para a cama, do almoço com a sogra para o jogo de fim de tarde com os amigos. Esses espaços são muros brancos em que se vem escrever e inscrever o inusual, o fora de uso e de época, os tempos em que os animais falavam e santos e demônios lutavam pelo controle da terra. O sertão, e por extensão o Nordeste, são para os habitantes das cidades aquele espaço outro onde ainda tudo pode acontecer, onde a lógica racional e cartesiana ainda não se impôs, onde o sagrado e o profano, o mítico e o místico ainda encontram guarida.

O Nordeste e o sertão ainda permitem o voo e a viagem, a visagem e a fuga para o surreal, para o realismo mágico e para o fantástico, servindo de balsamo para os milhões que vivem a vida sem graça e sem sonho de um cotidiano de exploração, repetitivo e sem sal. O Nordeste evita o tédio, abrasa a imaginação, nem que seja para se convocar as mesmas imagens de sempre, as imagens as mais gastas e desgastadas, mas que ainda fazem efeito sempre que recauchutadas numa boa narrativa e interpretadas por um ator ou uma atriz de talento e eleição dos telespectadores.

Vem aí mais uma novela passada no Nordeste, e que ela será passada não restará a menor dúvida, não esperemos que se vá sair do que já é esperado, do que vem fazendo sucesso há décadas. Esse Nordeste e esse sertão que funcionam como o fora, o outro, o estranho, o fora da norma, espaços de projeção de um imaginário barroco, rocambolesco, histriônico, por vezes, mas sempre trágico, dramático, onde personagens que encarnam tipos, que encarnam símbolos, alegorias, muitas vezes esquemáticos, numa dramaturgia do primitivo, do simples, remetem os telespectadores para suas emoções e paixões primárias: o amor, o ódio, a inveja, a angústia, a cobiça, a maldade.

O Nordeste e o sertão são esses espaços de eleição para se projetar fantasias e fantasmas os mais obscuros, para se figurar os desejos mais inconfessáveis: o desejo de morte, de salvação, de destruição, de violência, de vingança, de poder desabrido, de machismo recalcado, de homofobia internalizada e culpada, de racismo que teme dizer seu nome mas que não se importa de assumir a cena. Nossas reservas de imaginação, mas também nossas forças inconscientes, nossos desejos mais denegados e renegados, nossos gozos proibidos, as versões de nós mesmos foracluídas, ou seja, integradas para ser renegadas.

O Nordeste e o sertão não deixam de ser um incômodo, uma impossibilidade de dizer, o nosso real que procuramos mascarar em nossas versões da realidade. Aquilo que nos habita aonde vamos, mas que sempre fingimos tê-los deixado para trás. Daí essa distância visual e temporal com que são imaginados e representados. Mas como o real e o inconsciente tendem a retornar, nem que seja como sintomas, como lapsos, como imagens sonhadas e ideadas, o Nordeste e o sertão que fazem parte da subjetividade e da imaginação de todo brasileiro, tendem sempre a retornar, nessas narrativas clichês, nessas narrativas cheias de topos repetitivos, de personagens que de tão repetidos aparecem de saída como farsescos e caricaturais.

É muito bom pensar que não temos nada que ver com o que vemos na novela, que ela nos fala de um mundo alheio e estranho, que justifica o meu mundo que ,medíocre, também desmorona ao redor do sofá, onde um marido gordo e sem vontades outras dorme até babar, numa casa grande e desertada por filhos e filhas que se trancam em seus quartos e em seus mundos a parte. É sempre bom que antes ou depois da janta nos sirvam como prato e repasto as carnes ditas sertanejas ou nordestinas, os personagens com jeito e cara de fome, que permitem que nos sintamos satisfeitos com a sopa de feijão e o pão com margarina, que ainda nos espera sobre a mesa ou já provocam roncos em nossas tripas. Oxente, bichinho! Que novela pai d’égua essa passada em Curumutanga do Norte (sempre nomes pretensamente indígenas). O sucesso está garantido, pois, além de tudo, se o peso da janta provocar cochilos e dormidas, não se perderá muita coisa, pois já se sabe como é que funciona e nem bem a novela começou já se sabe qual é o fim da trama.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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