A noção de indivíduo emergiu no mundo moderno à medida que, na sociedade burguesa, as relações sociais capitalistas iam fragilizando e destruindo as vidas comunitárias. Os homens e mulheres que viviam presos às regras e laços comunitários, que deviam se submeter e obedecer aos regramentos coletivos e hierárquicos dos feudos, das aldeias, das cidades; com o desenvolvimento do comércio, com o surgimento da possibilidade de enriquecimento, exercendo uma atividade que, em grande medida, dependia da mobilidade, do deslocamento, começam a desejar e conseguir serem mais livres desses códigos muito restritivos.
As lutas pela liberdade em relação às amarras feudais se iniciam nas cidades e fazem delas territórios mais livres, notadamente para os ricos e poderosos controladores dos burgos (cidades), ou seja, os burgueses. A atividade comercial e empresarial começava a valorizar a iniciativa individual, o que hoje se chama de empreendendorismo. A conquista da liberdade para a realização das atividades de transações e negócios fez com que a ideia de indivíduo surgisse atrelada a noções como autonomia e libertação.
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À medida que as cidades adquiriam, inclusive monetariamente, suas autonomias em relação aos regramentos comunitários feudais, em seu interior os homens (muito mais do que as mulheres) iam reivindicando a liberdade de ir e vir e de empreender e construir trajetórias próprias de vida.
Com o chamado Renascimento Cultural - mudanças ocorridas no âmbito das artes e da cultura, entre meados do século XIV e meados do século XVI -, o artista e o humanista surgem como produtores de arte e de ciência que se destacam e se individualizam em relação as rígidas regras que regiam as corporações de ofício e as universidades medievais.
O artista difere agora do artesão por ser alguém que, mesmo ainda dependente do patrocínio e favores de um mecenas, cria sua arte com maior liberdade, individualiza seu modo de fazer, cria novas regras e novos estilos, passa a ser um nome que se individualiza, ao contrário do que era o trabalho coletivo e anônimo do artesão de uma corporação.
O mesmo se dá com o humanista, com o cientista que enfrenta as regras tradicionais das universidades, ele busca se destacar dando a elas novas configurações e procurando, a partir delas, se diferenciar, mesmo partindo da reprodução dos saberes antigos, dar a eles sua própria versão, deixar neles sua própria marca.
Com a Reforma protestante, no século XVI, esse processo de individuação chega ao plano religioso e de culto. O protestantismo se rebela contra a necessária intermediação institucional da Igreja Católica e de seus representantes da relação entre o crente e Deus.
A religião reformada estabelecia o contato direto e individualizado entre o fiel e Deus, permitia a leitura e a interpretação individual da Bíblia. Ela foi fundamental, junto com o surgimento da imprensa, no século XV, para a popularização do texto sagrado e para o surgimento do hábito da leitura individual, substituindo as leituras coletivas e a declamação em público, características do mundo medieval.
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Foi o surgimento desse público burguês, citadino, culto, em busca de leituras individuais, que fez emergir, no século XVII, o romance. Costuma-se considerar que o livro escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, publicado em 1605, como aquele que inaugura o novo gênero romanesco.
Nele se faz, justamente, uma crítica ao romance de cavalaria, um gênero medieval, caracterizado pela leitura pública e coletiva e pelo fato de que ainda não possuíam o registro da autoria individual de suas histórias, sendo elas anônimas e de domínio público, em sua maioria. O surgimento da figura do autor, do escritor que traz seu nome individual na origem de uma peça literária é mais um passo para a emergência dessa forma particular de nos vermos, ou seja, não mais como partes de um coletivo, mas como seres individuais.
A individuação, que foi uma conquista em termos de construção de sujeitos e de subjetividades mais autônomas e livres, foi se tornando um problema à medida que foi levando ao individualismo que, em nossa época, atinge suas consequências mais funestas.
O que foi a princípio o romper com as amarras e opressões dos códigos comunitários e senhoriais, foi se tornando o declínio de qualquer sentido de comunidade e de coletivo.
Vivemos hoje um quase desprezo por tudo que nos remete a preocupações que ultrapassem e prescindam de nossos interesses e desejos individuais. A crise das utopias socialistas, comunistas, nasce desse aprofundamento do desprestígio de tudo que nos remeta a preocupações coletivas e comunitárias. O neoliberalismo, assim como o pensamento liberal dos séculos XVIII e XIX, base do surgimento da democracia moderna e burguesa, aprofunda a centralidade do indivíduo e coloca a prevalência de seus interesses e desejos em relação a uma instância coletiva de controle e de distribuição de bens e riquezas como é o Estado.
A ojeriza contemporânea ao Estado, a rejeição e criminalização da política, levada a efeito por uma imprensa dominada pelos valores individualistas, privatistas e egoístas do neoliberalismo, aprofundam o desengajamento das pessoas de atividades que visem o bem coletivo, a convivência em comunidade.
Uma boa parte da militância política contemporânea se faz em defesa de pautas que levam a um aprofundamento da ideia de autonomia e liberdade do indivíduo, que foram fundamentais na criação do espaço público burguês. As lutas feministas, de minorias sexuais e de gênero, antirracistas, embora tenham enorme impacto coletivo e atinjam efetivamente questões estruturais de nossa sociedade, à medida em que atualizam a dimensão libertária da ideia de indivíduo, tendem a substituir e elidir a elaboração e a luta por projetos coletivos de transformação social, pela produção de novas comunidades.
Lutas pelo fim das desigualdades sociais, contra a miséria, anti-imperialistas, em defesa do meio-ambiente, exigem a saída do individualismo e a coragem do engajamento coletivo, elas não são lutas setoriais, são de todos nós.
A face mais cruel do individualismo é a indiferença em relação ao outro, é o fechamento de cada um em sua vida própria, como se ela pudesse ser vivida independentemente do que se passa em seu entorno, do que se passa em sua sociedade. O individualismo, o centramento egóico tem um alto poder de alienação, de desligamento da realidade.
As visões delirantes da realidade, o desprezo pelo real que vemos a nossa volta (gente que é capaz de negar a existência de um vírus, capaz de negar que existam pessoas morrendo por causa dele) nasce de extremado individualismo que nos vem levando a uma insensibilização em relação aos outros e ao mundo, a uma cegueira em relação ao real.
Há quem ache que sua versão individualíssima do mundo é a que importa, não adianta as evidências vindas do real mostrar ao contrário. O individualismo tem levado centenas à morte nessa pandemia, à medida que muitos acham que sua liberdade individual e seu desejo pessoal devem prevalecer e não devem ser limitados em benefício do bem estar coletivo. O individualismo e sua consequente indiferença social têm se mostrado mortais.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.