Nosso ensaio de casamento foi num hospital abandonado porque a paixão por coisas antigas nos uniu

O casal que misturou vestes pretas, um lugar histórico do Cariri e muita autenticidade para imprimir o próprio jeito de enxergar o amor

Legenda: Carol e Haarllem nas antigas ruínas do Hospital Regional Manuel de Abreu, no Crato (CE); hoje, o espaço é o Centro Cultural do Cariri
Foto: Samuel Macêdo

É uma verdade universalmente conhecida que todo ensaio de casamento se rende a um padrão. Espécie de lei invisível. Há que acontecer em lugar idílico – praia ou floresta. Os noivos precisam beirar a perfeição. Nada de sujeira, falha ou erro. Traços pesados também não entram. Cria-se um universo em tons pastel, suave e nobre.

Carol e Haarllem sentem isso: é tudo fictício demais. Como se, na pasteurização dos registros, não ficasse evidente a singularidade do casal, a verdade deles. Assim, os dois escolheram um lugar no mínimo inusitado, mas bastante autêntico, para as fotos do casório: as ruínas do antigo Hospital Regional Manuel de Abreu, no Crato, Ceará.

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O prédio já teve uma das arquiteturas mais marcantes do Cariri. A construção data de 1946, quando a estrutura pertencia à Ordem da Sagrada Família e serviu primeiro como seminário. Tempos depois – devido, sobretudo, ao golpe militar de 1964 – a casa ficou fechada até ser arrendada pelo renomado médico e político, Humberto Macário de Brito.

Foi quem instalou, ali, um centro especializado no tratamento da tuberculose, batizando-o de Hospital Manuel de Abreu em referência ao inventor da abreugrafia – exame utilizado na detecção da doença causada pelo Bacilo de Koch. A inauguração do empreendimento aconteceu em fevereiro de 1973, com grande pompa e burburinho.

Foto: Samuel Macêdo

Décadas depois, ano de 2014, outro capítulo dessa jornada. A instituição precisou fechar as portas novamente, ruminando um longo processo de abandono e depredações. Os sinais do tempo se acumularam. Restos, escombros, rachaduras. Relíquias também. É aí que entra nosso casal: Carol e Haarllem adoram coisas antigas.

Trabalham no Ateliê Padre Cícero, loja virtual especializada em restaurações, compra e venda de antiguidades. O negócio é tocado por Haarllem há mais de dez anos. Carol ingressou à medida que conheceu o até então namorado e, agora, esposo. “Eu era estilista, e tinha pedido para ele fazer a reforma de uns móbiles para o meu ateliê. Nos conhecemos ali”.

A partir do falecimento da mãe, não viu mais sentido em prosseguir costurando sem a companheira. Resolveu se filiar ao empreendimento do marido. Foi a melhor coisa. Agora ambos vivem de garimpar móveis, objetos, itens por vezes muito pequenos, capazes de reter memórias inteiras. “A gente entende que o melhor está nas coisas simples”.

Foto: Samuel Macêdo

Peço para ver uma das peças – algo que seja especial para eles, e que esteja na casa onde moram. Carol diz que, de fato, o lar do casal é todo feito dessas miudezas. Então saca um coração de bronze e exibe, orgulhosa. Acharam de um artesão caririense. Representa bastante os dois. A solidez do artefato, o brilho e conservação dele.

É como enxergam o relacionamento: não há tempo para o medo de se entregar, de demonstrar a verdade. Já viveram experiências anteriores e sabem como funciona. Ser real custa, mas vale a pena. Bancar o próprio eu, o próprio nós, é coisa de gente grande. Percebem isso ao percorrerem quinquilharias e enxergarem, nelas, outras histórias, tantas vivências.

Se a matriarca de uma família morre e são chamados para avaliar os móveis, percebem o quanto as coisas são passageiras, mas guardam eternidade. Há algo de presença na ausência. Aquele luto que por vezes demora a morrer ensina a encarar os ciclos de forma mais generosa e, por que não, serena. A gente poderia enxergar as relações assim.

Legenda: Esse coração de bronze foi feito por um artesão do Cariri e achado pelo casal; agora, fica na casa deles
Foto: Arquivo pessoal

“A história propriamente dita é contada pela rotina, pelas marcas da vida. Se pensarmos subjetivamente, nossa história, assim como a de todo mundo, é caótica porque a vida é caótica. Não é nada bonitinha, plastificada, como a galera pinta quando vai fazer as fotos de casamento, por exemplo – aquela coisa branca não combina com a verdade”.

A verdade de Carol e Haarllem foi casar apenas no civil e reunir a família numa hamburgueria para celebrar o feito – no cardápio, hambúrguer e refrigerante. Durante o ensaio, entre tatuagens e destroços do hospital, aquelas vestes pretas, vestido de noiva contrastando com o buquê vermelho. Foi diferente de ver. Mais ainda: foi fiel ao íntimo.

Talvez o amor seja isso: permitir ao outro e a si a possibilidade de ser livre. É também olhar para presente e futuro e todo dia construir herança. Uma carta, um relicário, um guarda-roupa. Quem sabe até outra estrutura, outra construção. Os velhos entulhos do  Hospital Regional Manuel de Abreu, por exemplo, hoje são o Centro Cultural do Cariri. Novo lugar para abrigar lembranças. Alicerçar sonhos.

Legenda: Uma das partes do ensaio de Carol e Haarllem foi na Serraria Andrade, famosa na região do Cariri
Foto: Samuel Macêdo

“O fotógrafo que fez nosso ensaio, Samuel Macêdo, trabalha lá”, informa Carol. “E recentemente estivemos lá para um show. Até assim, quando estamos nos divertindo, garimpamos coisas. Independentemente do que somos hoje e do que seremos amanhã, se estivermos juntos, será massa. Estaremos muito felizes”.

É uma verdade universalmente conhecida que um pensamento assim põe a gente para a frente. Feito acontece com a Carol e o Haarllem. Raridades um do outro, diamantes de si.

 

Esta é a história de amor de Ana Carolina Landim Rodrigues Silva e Cícero Haarllem Nogueira Resende. Mande a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor