Aquele foi o dia de sorte de Pepe. O de Geise também. Ele soube de imediato. Ela saberia anos depois.
Começou como começam os dias. Pepe virou a rua atordoado, maltrapilho, esfomeado. Refeição nenhuma no estômago, costume permanente. Dentro de casa, Geise talvez ainda estivesse de pijama, lavando a louça do café. Guardando as sobras. Mas ela precisou sair e, quando o vento açoitou a porta, era Pepe quem estava lá.
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“Tem um cachorrinho aqui”, gritou para a mãe. Pepe não arredou pé, mesmo Geise tendo entrado sem indício de saída. E ela só voltou porque a mãe insistiu. Trouxe água e comida. E apenas isso. Não trocou carinho, não acenou pro cãozinho. Nunca se deu bem com animais. Aos 41 anos, parecia criança de novo. Aquele medo que não passa.
As próximas horas correram bem. Geise fez o que estava previsto na rotina, e até o imprevisto. Trocou alguma discussão com a mãe – a convivência entre elas sempre foi difícil – ouviu música, assistiu à TV. Escolheu uma bela peça do guarda-roupa para sair. Não faltavam: bolsas, vestidos, sapatos. Fartura.
Novo dia, a porta se abre outra vez naquela altura da merenda. Barriguinha miúda, orelhas baixas, olhos de cigana oblíqua: Pepe presente. Novamente água e comida. Novamente a obrigação que se criava. E foi assim que, no levantar do outro sol, Geise colocou o vira-lata pra dentro. Agora não haveria mais relento. Nem vento, nem calor.
Mas tinha uma coisa.
Pepe estava tomado por carrapatos. O sujo da rua não deu trégua. Agarrou nele e não saiu. Geise ainda tentou contornar a situação ao longo do mês, reforçando a comida, os nutrientes. Nada. Chamou veterinário. A suspeita era de calazar. Receio confirmado. Há 10 anos, a doença era o fim. E o fim do Pepe veio. Foi sacrificado.
Com a situação, o desespero de Geise gritou: ela já não era a mesma. O temor de cachorro tinha ido embora. Sobrou a solidão do amor. Ficou em pânico, em desatino. “Aquela pessoa que ocupava tanto espaço no mundo, onde foi que se meteu?”. Tanto que ganhou de presente da irmã, no mesmo dia do sacrifício, uma cadelinha poodle. Não conseguia nem olhar para Lala, porém. Luto que esfacelava.
Agora, dentro dessa história, são quatro anos depois. Geise já trabalha, cuida de empresa própria. Tem marido e deveres maiores. E, então, o celular se ilumina: “Grupo de Proteção Animal”. Parecia um bom lugar para estar. Quem sabe? Ingressou. Dali até fazer o primeiro resgate de um cachorro abandonado, na Praça do Ferreira, foi um salto. Veio o Ziah.
Vieram também os Antônios, Franciscos, Bilus. Todos com calazar, tratados em clínica para tentar viver. E, quanto mais Geise percorria a cidade, mais eles se avolumavam. Pareceu um percurso natural: haveria de reunir todos num lugar só. Não cabiam mais em nada. Lugar que seria só de cuidado e carinho. Codinome: Abrigo Nosso Lar.
São 500 os que hoje vivem nele – em Caucaia, com casa de apoio no Bairro Ellery. Sem apoio de organizações e voluntários, é quase sempre carência. Já sofreu incêndio, já mudou de sede. A felicidade quem traz é Geise, mesmo em lágrimas – aflição de não conseguir prover tudo. Enche as vasilhas de comida. Nenhum dia de fome, ela garante. Nenhum.
Caso você a encontre, ela estará com a roupa meio rota, suada, os cabelos desgrenhados. Vive em função dos animais. Cuida também da mãe, com Alzheimer e Mal de Parkinson. É velhinha, 82 anos. Velinha. Elas finalmente conversam, se perdoam, se entendem. Reinício.
E não há mais aquele tantão de bolsas, sapatos e joias. Vestidos caros também não, a mobília que dizia da pompa. Geise é o silêncio da madrugada – simples, vazia de antigos estímulos. Quer planejar o futuro. Nessas horas, quando as crias dormem, encara o espelho e suspira: “Vou conseguir”. É Pepe quem vem à mente. “Vou conseguir”.
Esta é a história de amor de Geise Rocha Benevides e dos cães cuidados por ela. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor