Desde os anos 1960, os Rolling Stones têm um termômetro de seu desempenho no palco. A explosão emocional dos fãs, claro, é excitante, mas todos eles sabiam que o veredito da noite cabia a Charlie Watts. Com mais de 70 anos, milionário e ídolo de seus pares e de plateias nos seis continentes, Mick Jagger ainda procurava no baterista o sinal de aprovação.
Se Charlie estivesse sorrindo, então os Stones sabiam estar tendo uma noite daquelas.
A banda tem uma turnê de 12 datas, programada para iniciar em setembro e se estender até o fim de novembro. Desde o mês passado, sabia-se que Charlie não iria participar dessa vez - sua primeira ausência em 58 anos como integrante dos Stones. Estava em tratamento e os companheiros falavam animados de seu retorno iminente. Em 2022, o grupo chegará à improvável marca de 60 anos de carreira,
O anúncio da morte de Charlie Watts, nesta terça-feira (24), teve o efeito de um beliscão que faz despertar de um sonho ou alucinação. Não deveria parecer tão surpreendente a partida de um senhor de 80 anos, sobrevivente de um câncer na garganta e no embate contra mais uma doença (não divulgada pela família). Mas, bem, Charlie é, era um rolling stone e, contrariando todas as previsões e possibilidades, os Stones pareciam ser eternos.
Contemporâneos dos Beatles e do The Who, sêniores em relação a Pink Floyd, Led Zeppelin, Black Sabbath, os Stones não seguiram cartilhas. Se inventaram alguma, não era do tipo de alguém pudesse seguir em segurança. Punks antes do punk, os Stones não sacralizaram os estúdios; gravavam certo em takes tortos. Brigaram entre si, tomaram drogas em excesso, tiveram suas casas invadidas por traficantes, eram mal vistos em meio mundo. Jagger diziam não querer estar por aí, aos 40 anos, cantando "Satisfaction".
Por muito menos, bandas de sucesso se fragmentaram ou acabaram; gente desistiu, pirou ou morreu. Dos sete músicos que já integraram o grupo inglês, Charlie é o segundo a se despedir da vida, octagenário, cercado da família, num hospital em Londres. Antes dele, foi Brian Jones, 27 anos, afogado numa piscina no longínquo ano de 1969.
Parte significativa da fórmula improvável dos Stones foi justamente ter um baterista como Charlie. Jazzísta de alma e de direito, já era músico profissional quando Mick, Brian e Keith Richards o convidaram a se juntar ao grupo. Os três sabiam que o trio não tinha cacife para ter um batera como Charlie Watts. A curiosidade em relação ao rock, cena então nascente na Inglaterra, o convenceu. Duraria um ano, ele pensou.
Em quase 60 anos de carreira, tocando na maior banda de rock do mundo, Charlie não cedeu a modismos - pecado do qual nenhum dos outros stones pode alegar inocência. Nada de baterias monstruosas e mão pesada. Preferia a precisão ao tocar seu kit da Gretsch, jazzisticamente rocando rocks, reggaes, blues.
Charlie tampouco se seduziu pela vida de rockstar. Não escondia o desprezo pelo tipo, pouco importava que seus companheiros fizessem escola nela.
Era um músico e o que acontecia com sua vida dizia respeito apenas a ele. Não ia a festas com celebridades, não ostentava uma masculinidade tóxica e sexualmente predatória, nem fez a linha viciado-chique. Não vendeu quilos da própria carne. Casou com a namorada de antes da fama, teve uma filha, uma neta, criava cavalos longe da cidade grande, ouvia seus velhos ídolos do jazz e fazia pouco das aventuras e desventuras de seus companheiros.
Seu legado prescindiu da má fama calculada, da pose e da vaidade. As provas são abundantes, na extensa discografia dos Stones e em sua seleta obra solo. Não era apenas rock'n'roll para ele: era essencialmente rock'n'roll.
O tempo o tornou ainda mais clássico e classudo. Charlie era o que era, era como era. E fará falta aos Stones, se ainda houver Stones depois de Charlie.
Septuagenários, Mick Jagger, Keith Richards e Ron Wood saberão dar o ponto em sua mistura, sem o aceno positivo ou o sorriso raro de Charlie Watts?