O Ceará pode ficar sem Hidrogênio Verde no mercado interno mesmo sendo produtor? Entenda os riscos
Ambientalista alerta para a possibilidade de uma produção voltada para substituir os combustíveis fósseis em outros países, mas arriscando atrasar a transição energética local
Dezenas de memorandos e de promessas de progresso. O itinerário para a chegada do Hidrogênio Verde (H₂V) no Ceará começa pavimentado pelas expectativas, mas marcado por incertezas, sobretudo em relação à concretude de todos os projetos e quais os impactos para a população cearense — e não apenas para o mercado.
Para o ambientalista e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Alexandre Araújo, é necessária uma análise crítica sobre os movimentos em torno da produção local desse combustível, cujos esforços estariam voltados para a transição energética de outros países.
No Ceará, as usinas de H₂V ficarão na Zona de Processamento de Exportação do Ceará (ZPE), área de livre comércio com o Exterior, onde são instalados distritos industriais beneficiados com concessões tributárias e liberdade cambial.
“É importante lembrar que o Hidrogênio Verde não é uma fonte de energia, mas um vetor, um intermediário, o qual armazena a energia gerada na fonte (no caso, as renováveis) e leva ao uso final”, explica o ambientalista.
“O risco, portanto, é que, em vez de nos beneficiarmos dessa energia diretamente na rede, sendo usada para atender demandas locais como a descarbonização do transporte, ela seja exportada como hidrogênio para ‘limpar’ a matriz energética de outros países, principalmente na Europa”.
Conforme Araújo, tal cenário pode provocar uma produção prioritária para substituir os combustíveis fósseis em outros países, arriscando atrasar a transição energética local.
A questão levantada não é sobre deixar de abastecer o mercado internacional, mas discutir o aproveitamento da vocação natural do Ceará também para benefício próprio e como evitar o agravamento das desigualdades, já que o aquecimento do planeta tem efeitos dramáticos para a população vulnerável.
Para se ter ideia, segundo relatório do Banco Mundial, os choques climáticos poderão empurrar de 800 mil a 3 milhões de brasileiros para a pobreza extrema, em 2030.
Para resolver o problema do foco na exportação, o ambientalista sugere a imposição de condicionantes às empresas interessadas em fabricar o H₂V para garantir parte da produção para o desenvolvimento regional.
Araújo enfatiza, ainda, que usinas eólicas (essenciais para a fabricação do Hidrogênio Verde) também têm um custo socioambiental, como desequilíbrio ecossistêmico e impactos negativos a territórios e populações.
Nesse contexto, o Ceará ficaria apenas com os ônus dessa indústria, a qual teria o poder de provocar injustiças em relação ao uso dos bens naturais se não houver um mecanismo para equilibrar o interesse privado na exploração do setor energético.
A coluna solicitou ao governo o posicionamento em relação à crítica e questionou se há planos de elaborar condições para as companhias a se instalarem na ZPE Ceará.
Em nota, a Secretaria de Desenvolvimento (SDE) comentou sobre o potencial do Brasil e disse haver “abundância energética”. No entanto, a pasta não respondeu especificamente às indagações da reportagem (leia nota na íntegra no fim deste texto).
Ceará terá capacidade de atender dois mercados, mas requer medidas estruturantes, diz especialista
O pesquisador da FGV Energia, Vinícius Botelho, avalia que, inicialmente, a principal motivação para a produção do Hidrogênio Verde, no Brasil, se deu a partir da demanda internacional, com planos robustos e memorandos de entendimentos.
“Essa primeira escala tem perspectiva maior de atender ao mercado externo, mas identificamos por parte das indústrias de difícil descarbonização, como siderurgia, cimenteira, mineração, fertilizantes e refino, que iniciativas para a descarbonização local estariam em pauta e passam inclusive a impulsionar novos projetos”, pondera.
O pesquisador aponta ser necessária uma política voltada para a neoindustrialização e medidas estruturantes para o mercado interno se desenvolver. Para ele, há capacidade de suprir ambas as demandas, mas é preciso gerar condições para os investidores nacionais.
“Atualmente, o custo de produção do hidrogênio cinza varia de 0,8 a 3 US$ por kg, enquanto o do Hidrogênio Verde, no Brasil, está em torno de 4,5 a 6 US$ por kg, podendo ser mais baixos a depender da otimização da produção e da criação de políticas de incentivos. Isso tem impedido, juntamente com a falta de um arcabouço legal, o fechamento de contratos e a tomada de decisão de investimento por parte dos produtores”.
Na análise do especialista, as primeiras plantas de Hidrogênio Verde se tornarão realidade ainda nesta década, entre 2026 e 2030, abastecendo tanto o mercado interno quanto o externo, a depender da maturidade e percepção de risco sobre adquirir o H₂V mais caro.
Conforme Botelho, no entanto, as condicionantes para retenção de parte do gás produzido poderiam ser um entrave para o crescimento econômico, considerando que, para ele, as medidas estruturantes proporcionariam um ajuste natural.
São medidas necessárias para impulsionar o mercado local, segundo o especialista:
- Aprovação do marco regulatório do H₂V;
- Políticas de incentivos à neoindustrialização;
- Linhas de financiamentos diferenciadas para a indústria de H2V e o mercado de carbono;
- Infraestrutura para o escoamento da matéria-prima;
- Expansão da geração de energia para atender ao mercado.
Atualmente no Brasil, estão em tramitação três projetos de lei (PL) relacionados ao marco regulatório e o desenvolvimento da indústria do Hidrogênio Verde. São eles: 2308/2023, 5751/2023 e 5816/2023.
Veja posicionamento completo do Governo do Ceará
A coluna fez os seguintes questionamentos ao governo do Ceará: "um especialista aponta o risco de exportamos o H₂V e ficarmos sem, contribuindo com a descarbonização da economia em outros países, mas ficando atrasados nesse aspecto. Como o governo se posiciona sobre essa análise? O governo pretende colocar condicionantes para parte da produção ficar aqui?”.
Em respostas às indagações, a SDE enviou a nota abaixo.
“A produção de hidrogênio verde representa um setor que agrega valor e atrai uma extensa cadeia produtiva. O Governo do Ceará visa incentivar a produção do hidrogênio verde e também de produtos como o aço verde, o cimento verde e outros. Além disso, também objetiva contribuir para o desenvolvimento de novas tecnologias em energias renováveis e hidrogênio verde.
O Brasil conta com um excedente de energias renováveis 17 vezes superior às suas necessidades até 2050. Nesse contexto, há um potencial eólico e solar equivalente a cerca de 150 vezes a atual capacidade instalada de produção de energia elétrica no Brasil. Portanto, temos abundância energética.
Segundo dados oficiais, o Brasil tem capacidade para suprir mais de 50% da demanda mundial por hidrogênio verde até 2050. No entanto, estimativas conservadoras indicam que o Brasil poderá contribuir com cerca de 5% desse mercado em ascensão, promovendo desenvolvimento econômico, social e atraindo investimentos.
Salmito Filho
Secretário do Desenvolvimento Econômico do Ceará”