Meu depoimento poderia estar na cena da detenção em Sex Education

Legenda: Cena de Sex Education em que mulheres se unem para ajudar uma que foi assediada

Só saiam daí quando descobrirem o que une todas vocês. Essa é a ordem dada pela professora a seis jovens mulheres em Sex Education, série original da Netflix que abriu a segunda temporada há alguns dias. 

O desenrolar dessa cena me deixou com a sensação de nó na garganta. Sem figura de linguagem. Era de fato um nó de eventos nunca compartilhados na minha vida. Eventos que me deixam com medo, vulnerável e, ainda, com vergonha. Sim, porque a sequência da cena (daqui para frente vai ter muito spoiler) expõe uma obviedade: o que todas as mulheres têm em comum é a exposição ao assédio (ou "pênis não consensuais”, como resume a personagem tal). 

Na série, a personagem Aimee é violada dentro do ônibus por um cara que se masturba e ejacula nela, sujando de esperma seu jeans favorito. Apesar de ter se sentido incomodada e descido do ônibus (sempre nós saindo dos locais, não eles) Aimee não percebe de primeiro momento que foi assediada. Foi necessário a amiga, Maeve, alertá-la e insistir para que ela fosse à delegacia expor o acontecido. 

Aqui acrescento algumas vírgulas. Gostaria eu de ter tido uma Maeve em todas as situações em que estive exposta e fui assediada e/ou violada.

Na minha infância e adolescência, porém,  não existia Sex Education e eu e minhas amigas pouco sabíamos sobre como nos defender de certas ocasiões e o que, de fato, elas eram.

Na detenção com as outras alunas, Aimee consegue, finalmente, expor o que de fato aconteceu e a fala dela puxa outros depoimentos sobre assédio. Todas tem o seu caso a contar. Enquanto cada uma falava o seu, minha garganta fechava mais, meus olhos mareavam e minha respiração faltava. Lembrava do dia em que eu, no início da adolescência, estava com amigos andando na rua voltando da praia e um cara colocou o corpo pra fora pela janela de um carro em movimento e deu um tapa na minha bunda. Ele saiu gritando e rindo do feito. Eu, fiquei em choque. As pessoas ao meu redor, riram. Só me restou rir junto, nervosa, sem jeito e tentando me culpar de alguma maneira por aquilo ter acontecido. Me lembrei também de um Carnaval em que o cara que eu estava ficando se aproveitou do meu estado de embriaguez para passar a mão em mim, enquanto eu balbuciava "cadê minha amiga". Mas eu estava ficando com ele, né? Quem iria dar ouvidos de que ele se aproveitou e eu não permiti? Lembrava eu criança passeando no shopping com minha amiga e um garoto passar a mão pelos meus cabelos e falar qualquer bobagem. Eu travada, fiquei com medo de andar no shopping, de passar perto de grupos de caras, sentia calafrios e palpitações. "Que besteira, ele só pegou no teu cabelo". Sem saber, eu sentia que meu espaço havia sido invadido e meu corpo exposto sem meu consentimento, independente da parte que fosse, e isso havia me deixado transtornada. Mas não sabia explicar e, claro, minha amiga também não. Lembrava já adulta, numa festa na Praia de Iracema, que um gringo encheu a mão na minha bunda enquanto eu estava na fila pra comprar um drink. Nesse dia eu até gritei, mas ninguém me ajudou, ele continuou onde estava, e eu fui pro canto chorar. Ou há poucos meses, em um show de um artista que eu adoro, que falava no palco "respeita, respeita, respeita" e chamou para a roda. Eu entrei, e o cara do lado pegou com força no meu peito antes de entrar na dança cantando "respeita, respeita, respeita". Consigo sentir o gosto ruim de cada um desses episódios. Não passa. 

O tempo necessário para Aimee somente perceber de que havia sido violada e que aquele episódio a estava privando de viver com tranquilidade, a impedindo de realizar tarefas simples do dia a dia como pegar um "ônibus estúpido", expõe como nem sempre é de imediato que temos reações para impedir aquilo que nos incomoda, ofende e oprime.

Veja qualquer notícia sobre estupro e escute os questionamentos imediatos: "será que foi isso mesmo?", "mas ela não saiu, não gritou, deve ter achado é bom", "se não denunciou, então gostou" dentre outras. A mulher violada é violada duas vezes: pelo homem e pela sociedade. 

Em "Sex Education", as mulheres se unem para fazer com que Aimee superasse o trauma junto com elas. Ao cara, não se sabe o que aconteceu. Eu, sigo lendo, pesquisando, estudando e bradando aos quatro ventos que mulheres devem ser respeitadas - conhecimento que ajudou Maeve a identificar de cara e saber os caminhos para ajudar Aimee. Aos caras que fizeram essas e outras comigo, nada aconteceu.

Quando uma série consegue, com cenas simples, reforçar a percepção de violações e abusos, é porque a educação sexual é necessária e urgente, ou continuaremos jogando para debaixo do tapete todos os casos aos quais estamos expostas diariamente. Se você se visse, todos os dias, no jornal com notícias sobre sua morte, seu estupro e seu abuso, você lutaria para que ninguém mais passasse por isso. A nós, acontece todos os dias. Eu me vejo ali, todos os dias. E eu me vejo em todos os depoimentos da série. Na ficção e na realidade, o que nos une agora é que seguiremos lutando para que nenhuma de nós carregue essas histórias para contar.    

(Em tempo, abstinência sexual é imbecilidade. Até uma série para adolescentes consegue ser mais consciente e eficiente.) 



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