Alerta: o conteúdo desta reportagem tem descrições de cenas de agressões e pode conter gatilhos emocionais, sobretudo para pessoas que já vivenciaram um contexto de violência doméstica

No fim de tarde, em um bairro periférico de Fortaleza, Joana*, de 25 anos, voltava de um comércio acompanhada de um colega. No fim da rua, via-se um ponto distante ganhar a forma de um motoqueiro. Parecia uma movimentação comum. Ela se despediu do colega e continuou andando em direção à casa onde mora, como fazia todos os dias naquele horário.

De repente, o motoqueiro começou a acelerar. Numa questão de segundos, estava na frente dela, armado. Era o seu ex-companheiro. Para desviar, Joana pulou instintivamente para um batente. Ele caiu, mas logo correu em direção à jovem e começou a agredi-la. Foram puxões de cabelo e socos. 

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Ela se defendeu, e os dois entraram em luta corporal, ali, na calçada da residência dela. Ninguém da vizinhança fez nada. “Depois de me bater, ele disse para eu ficar esperta, para tomar cuidado até quando fosse comprar pão porque eu ia morrer”, relata. Isso ocorreu há dois anos.

Foi a primeira vez que o ex-companheiro e pai do filho dela havia partido para agressão física. Antes, houve “avisos” sobre não aceitar o fim do relacionamento, mas ela não acreditava no cumprimento das promessas. Naquele dia, o homem quis mostrar ser capaz de qualquer coisa. Após essa agressão, as ameaças continuaram.

Alguns meses depois, quando estava varrendo a calçada, Joana conversava com um vizinho. O agressor fazia “ronda” para vigiá-la e a viu. Ela entrou. Em minutos, o homem batia à porta com muita força e gritava. Ao abrir a casa, foi esmurrada, familiares foram empurrados, inclusive uma pessoa idosa. O filho deles chorava desesperadamente diante da violência. 

“Foi muito doloroso ver alguém que coloquei na minha vida e escolhi para amar fazer isso comigo. Era o pai do meu filho. Isso me feriu e me travou para a vida de formas diferentes. Passei quase dois anos parada no tempo, remoendo aquela dor”, conta.

Joana decidiu não esperar mais. Foi à Casa da Mulher Brasileira, centro especializado em violência doméstica, para denunciar o ex-companheiro. Lá, se sentiu acolhida, conheceu o equipamento e viu a oportunidade de se reerguer, mas ela ainda não se sentia pronta emocionalmente.

Enfraquecimento emocional dificulta recomeços

Conforme a psicóloga do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da Defensoria Pública do Ceará (Nudem), Úrsula Góes, após o rompimento da relação, essas mulheres continuam morando sozinhas com os filhos menores de idade (37,3%) ou com familiares (43,1%).

“A depender da quantidade de filhos, da atividade profissional e principalmente de quão abusiva foi a relação, as vítimas ficam distantes do mercado de trabalho, sem qualificação e com maior dificuldade de manter a si e aos filhos sem a renda do ex-companheiro”, observa. 

violencia domestica
Legenda: Vítima chegou a ouvir que sofrer as agressões até podia ser ruim, “mas seria pior” ficar sem o companheiro
Foto: Fabiane de Paula

Ela reforça que há ainda o agravante do comprometimento emocional ocasionado pela relação de violência psicológica. Conforme a psicóloga, o mais complexo na realidade da mulher em um relacionamento abusivo são fatores emocionais envolvidos na construção das diversas formas de dependências. 

“Por exemplo, se ela aprendeu que para se sentir amada, acolhida ou pertencer a um determinado relacionamento, é necessário ter um ou outro comportamento, se submeter às vontades de terceiros e ficar mais vulnerável nos relacionamentos abusivos”, exemplifica.

Nesse contexto, aponta, deve-se considerar o repertório afetivo da mulher, ou seja, o histórico emocional construído desde a infância, nas relações parentais e nas relações afetivas e sociais.

“Esse é somente um exemplo. Na violência doméstica, a manipulação se dá pelo medo e culpa. Há sempre um aspecto que o agressor articula como se a incapacitasse”, destaca.

Capacitação profissional proporcionou o recomeço 

Neste ano, como um passo para superar o trauma, Joana decidiu voltar à Casa da Mulher para se capacitar. Conseguiu fazer os cursos para atuar com serviços de beleza e, aos poucos, planejar o futuro. “Agora, estou conseguindo voltar a respirar”, diz.

“Estou animada por estar capacitada, poder trabalhar atendendo clientes em domicílio aos fins de semana e entregar currículos para encontrar um emprego de carteira assinada”, comemora. 

O ex-companheiro de Joana parou de procurá-la após a denúncia e não mantém mais nenhum tipo de contato. No entanto, ela só se considera segura somente “porque teve sorte”. “Se outra pessoa não tivesse aparecido na vida dele, acho que eu ainda estaria sendo perseguida como tantas outras mulheres”, diz. 

“Queria falar para as outras mulheres não escutarem as pessoas que dizem que é ‘ruim com ele e pior sem ele’. Não devo me contentar com o fato de apenas estar viva. Nós, mulheres, merecemos respeito. Aliás, todos merecem respeito, todos merecem ser amados, tratados com dignidade”, diz.
 

Ela, que chegou a ouvir que sofrer as agressões até podia ser ruim, “mas seria pior” ficar sem o companheiro, faz de sua experiência um grito de esperança para quem está na mesma situação e não consegue enxergar chances de uma vida melhor.

O que avançou e ainda falta avançar 

Na avaliação da integrante do Fórum Cearense de Mulheres, Ozaneide Paulo, a presença da Casa da Mulher Brasileira em quatro municípios cearenses (Fortaleza, Juazeiro do Norte, Quixadá, Sobral) e a previsão de aberturas de novas em Itapipoca, Limoeiro do Norte e São Benedito são avanços.

Assim como a Lei Maria da Penha evoluiu as ações de combate à violência doméstica. Para ela, o governo brasileiro tem apresentado melhorias, sobretudo em relação à questão de mudança cultural sobre a política de cuidado para fazer os homens assumirem esse papel na sociedade. 

“Quando uma mulher é vítima de feminicídio, toda a família morre, os filhos ficam órfãos e toda a família é abatida”, avalia. “Então, houve políticas públicas nas delegacias, investimentos nas defensorias e juizados, o Estado criou a Secretaria das Mulheres”, lista. 

“No entanto, isso precisa reverberar nos municípios, onde a violência acontece, nas nossas casas. Os gestores precisam criar secretarias da mulher e políticas públicas de prevenção”, reforça.

“O combate à violência contra a mulher ainda é muito pouco eficiente nos municípios”, destaca, "ponderando que as medidas nas cidades foram, aos poucos, sendo abandonadas em razão das mudanças de gestão", completa.  

*Nome fictício usado para resguardar a identidade e preservar a segurança da entrevistada