Antes do tempo: os direitos violados no silêncio da adultização precoce
Eles sorriem para a câmera, ensaiam declarações de amor, simulam ciúmes, beijos e términos da relação fictícia. Tudo roteirizado, gravado, no ar. São crianças e adolescentes expostos aos olhos do algoritmo acumulando seguidores e engajamento, antes do tempo.
Por trás das cenas de melodrama, a adultização precoce traz múltiplos impactos e fere direitos fundamentais para o bem viver de quem não ainda tem autonomia intelectual e maturidade cognitiva para discernir entre o certo e o errado.
Para o promotor de Justiça Lucas Azevedo, que atua como coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (Caopij), do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), na esteira da produção de conteúdo em que menores de idade assumem papéis de típicos de "gente grande" esconde-se uma infância silenciosamente violada.
“O Estatuto da Criança e do Adolescente garante, no artigo 4º, uma série de direitos que devem ser preservados. Quase todos eles são violados quando nós temos o fenômeno da adultização”, afirma.
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária
Direito à saúde, à educação, ao lazer, ao respeito, à convivência familiar. Nada disso resiste quando se antecipa em uma criança um comportamento que ela ainda não tem "desenvolvimento neurológico suficiente" para sustentar. Azevedo aponta, também, que a exposição prematura a papéis de adultos afeta a aprendizagem, a socialização e o brincar, fazendo a criança "se desconectar da própria infância".
Mas o impacto não para por aí. Uma vez condicionada a agir como adulta, a criança também tende a se afastar dos vínculos mais seguros que possui na família e na comunidade: dos pais, de amigos, de vizinhos, de professores e cuidadores. “Ela passa a se comportar de uma maneira ruim para ela e também para as pessoas que convivem com ela”.
Esta é a segunda e última reportagem da série "Antes do tempo", que fala sobre a adultização precoce de crianças e adolescentes e como isso pode afetar o futuro dos jovens, além de se propor a trazer estratégias do Ministério Público contra esta prática.
Cuidado compartilhado: o alerta do MP e o papel essencial das famílias
O que fazer, então, para garantir que a primeira infância seja uma fase acolhedora e sem perigos? O membro do MPCE enfatiza que proteger a infância é uma responsabilidade compartilhada, que passa pelo Estado, pelas plataformas digitais, mas começa essencialmente dentro de casa.
O olhar atento de pais e responsáveis deve alcançar, por exemplo, o que crianças e adolescentes consomem em plataformas digitais.
"Os pais precisam entender que o monitoramento das redes sociais dos filhos é uma forma de amor e proteção. Não é vigilância excessiva, é cuidado. Porque a internet, embora ofereça coisas boas, também pode ser um ambiente extremamente perigoso para uma criança".
Lucas Azevedo cita dois tipos principais de exposição em redes sociais que são prejudiciais:
Exposição ativa
É quando a criança ou o adolescente tem acesso a conteúdos inadequados para sua idade, como vídeos com linguagem adulta, violência, pornografia ou temas que exigem maturidade emocional.
O problema se agrava porque, segundo ele, as próprias plataformas digitais ainda têm mecanismos ineficazes de controle. Por isso, o papel das famílias é fundamental: "Não adianta nada a plataforma restringir o acesso se o pai ou a mãe deixa a conta aberta e a criança acessa tudo", completa.
Segundo a Lei da Adultização, empresas de tecnologia da informação devem proteger crianças de:
- exploração e abuso sexual;
- conteúdo pornográfico;
- violência física, intimidação sistemática virtual e assédio;
- incitação a violência física, uso de drogas, automutilação e suicídio;
- venda de jogos de azar, apostas e produtos proibidos para crianças e a adolescentes, como cigarros e bebidas alcoólicas; e
- práticas publicitárias predatórias, injustas ou enganosas.
Exposição da imagem da criança
Esse segundo tipo, talvez menos percebido, é quando os responsáveis publicam vídeos, fotos ou informações das crianças que acabam servindo de vitrine para pessoas mal-intencionadas — especialmente abusadores e pedófilos que atuam na internet, inclusive na dark web.
"Vamos supor que um pai e uma mãe postem um vídeo do filho dançando em uma festa junina. Sozinho, esse vídeo pode parecer inofensivo. Mas ao ser publicado repetidamente, chega a pessoas com desvios sexuais, que passam a acompanhar aquela criança", alerta o promotor.
Em muitos casos, complementa Lucas Azevedo, os próprios pais acabam expondo dados sensíveis, como o nome da escola, locais que a criança frequenta ou até a rotina diária da família. "Isso vira um prato cheio para criminosos que estão à espreita de uma vítima em potencial".
Prevenção e conscientização em foco
O promotor destaca que o MPCE tem atuado não apenas de forma punitiva, mas também na prevenção e conscientização, especialmente no que se refere à primeira infância, fase mais vulnerável e formativa da vida humana.
"A gente está falando do direito à saúde, à educação, ao lazer, ao respeito, à convivência familiar. Todos esses direitos são impactados quando uma criança é exposta de forma inadequada. A adultização precoce, inclusive, nasce muitas vezes dessa exposição irresponsável", pontua Lucas Azevedo.
Azevedo também aponta a importância da regulamentação, do debate legislativo e da responsabilização das grandes plataformas (as chamadas big techs) para que mecanismos mais eficazes de controle e denúncia sejam implementados.