Editorial: De frente para o mar

Não é frágil nem muito menos quebrável a relação que os cearenses têm com o mar. A citação dos verdes mares bravios pelo escritor José de Alencar logo na introdução do romance “Iracema, lenda do Ceará” – obra basilar na construção da identidade nacional – está longe de ser à toa, posto que as praias e as ondas se constituem autênticos personagens, como ambientes de confluência, da saga apaixonada da nativa tabajara e do colonizador português.

Ainda têm essa mesma lógica as extensas e ricamente detalhadas produções do pintor Raimundo Cela, do músico Luís Assunção e do fotógrafo Antônio Albuquerque. Ou as radicais manobras das surfistas Tita Tavares e Silvana Lima sobre as ondas, do mesmo modo que as vigorosas braçadas de rapazes nas chamadas “provas heroicas” da Fortaleza dos anos 1940 – verdadeiras jornadas a nado entre o Mucuripe e a Praia de Iracema. E mesmo as grandes esculturas nas falésias da Praia de Canoa Quebrada, assim como o arco que a natureza ergueu para emoldurar Jericoacoara.

O mar do Ceará é um elemento solidário, fraterno e dadivoso. De compreensão até maior do que a de um oceano, o que já seria demais, o mar é, sim, uma razão de viver. É aquilo com o que se pode sonhar a vida inteira, como o fizeram o legendário Orson Welles e o real Manuel Jacaré.

É do mar que se tiram alimentos e histórias – a beira-mar e suas luzes que escondem pessoas e sorrisos, as dunas brancas de onde se vem, o pescador que o peixe vai pescando, a bela artista na areia do cinema, a beleza mais rara. Vai, portanto, para além do entendimento do que se pode definir como paisagem, uma vez que ocupa a alma e o coração, as memórias e os afetos.

O mar nutre esperanças, projetos, empregos e receitas; é poesia, diversão e descanso, o que se pode depreender das estruturas que vão dos modernos Porto do Pecém e usinas eólicas a estaleiros privados e até parques aquáticos, hotéis e barracas de praia – das mais modestas às mais equipadas.

No último fim de semana, o Ceará e suas gentes um tanto que se voltaram para o mar. Olhar foi uma forma de saudar as evoluções, ao longo de dois quilômetros na Praia do Cumbuco, em Caucaia, de 596 kitesurfistas. Todos, numa espécie de Babel colorida, com numerosos idiomas e sotaques, conquistaram o reconhecimento planetário de mais atletas em performances simultâneas.

Sintonia rara e exemplar, pode-se dizer, pela demonstração patente de que planejamento, esforço e diálogo são meios muito eficazes de se alcançarem objetivos.  São elementos fundamentais para se promover uma relação mais saudável com os oceanos, agredidos pela poluição patrocinada por formas de consumo incivilizadas.
Os episódios recentes são capazes de propiciar motivos de reflexão a muitos. Reflexões sob muitos ângulos, da economia à política, do saber à harmonia. E essa talvez seja mais uma lição que o mar oferece – a da multiplicidade.

O mar plural que banha impressões das mais diversas é o mesmo mar singular que apenas leva e traz desejos. Estar de frente para o mar é estar diante de expectativas, é reconhecer potenciais e buscar aproveitá-los, usufruindo com respeito de um patrimônio que é coletivo e, até enquanto se cuida, inesgotável.


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