Poço da Draga tem história de moradores contada em projetos fotográficos

Ações culturais como a exposição "Dragaleria" e o calendário Lugar ArtesVistas registram memória, cotidiano e a luta por direitos das famílias que habitam e são donas deste território centenário de Fortaleza

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Valor arrecadado com o calendário será destinado a atividades socioculturais no Poço da Draga
Legenda: Valor arrecadado com o calendário será destinado a atividades socioculturais no Poço da Draga
Foto: Foto: Lorena Armond

O Poço da Draga testemunha 115 anos de existência no maio próximo. Escolha dos moradores, o dia 26 é repleto de simbolismos. Alui ao marco de inauguração da Ponte Metálica. Enquanto o primeiro porto interligava Fortaleza ao mundo, no entorno, inúmeras famílias fixaram morada.

Gerações inteiras, bem como a esperança por dias mais justos, ainda resistem no local. Nos retrospectos afetivos e históricos, a ponte representa pedra fundamental àquela comunidade da capital. Iniciativas artísticas costuram a relevância deste lugar.

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A exposição “Dragaleria” captura rostos e vivências. Proposto pelo retratista fotográfico Luiz Santos, o projeto virtual reúne, a partir da técnica centenária do lambe-lambe, 34 fotos de moradores da região. 

Quatro gerações de mulheres da família Gois. Zenir, Ivonete, Djeine Rudolf e a pequena Maria do Céu
Legenda: Quatro gerações de mulheres da família Gois. Zenir, Ivonete, Djeine Rudolf e a pequena Maria do Céu
Foto: Luiz Santos

A iniciativa traduz a contínua dedicação do pernambucano em pesquisar o tradicional equipamento. Em outra medida, equivale à trajetória de Luiz em documentar territórios periféricos, denunciando brasileiros submetidos às margens. 

Desbravando com lambes

O decisivo encontro com estas câmeras-laboratório ocorre em 2005. É quando ele firma parceria com mestre Tonho Ceará, àquela altura, um dos últimos retratistas de lambe-lambe em atividade no Nordeste. 

Juntos, correram estradas e salas de exposição com o projeto “A volta do Lambe-lambe”. Parte dessa jornada está no documentário “Cinema de Dois Tões” (2007). Em 2016, já com o lambe próprio, Luiz seguiu carreira solo. Dois anos depois fotografava as vielas do Poço da Draga. 

Documentário 'Cinema de Dois Tões' na íntegra

Na contramão da enxurrada de fotos dos smartphones e outros recursos digitais, o lambe reserva outro tempo de operação. Facilita a costura dos vínculos entre retratista e o retratado. 

“O modo desacelerado da câmera lambe-lambe permite esse encontro, estabelecimentos de uma relação que está muito perdida: a da espontaneidade. O que prevalece não é o acúmulo de informação, tem outras ordens atuando. A gentileza, a receptividade, a confiança. São sentimentos assim que ficam. Me interesso pela comunidade e o retrato chega e permite que isso flua”, divide o entrevistado.

Ricardo e o filho Totozinho
Legenda: Ricardo e o filho Totozinho
Foto: Luiz Santos

“Dragaleria” ainda traz textos pontuais que detalham o processo fotográfico. Em “O Poço em Mim”, temos rico depoimento de Sérgio Rocha, morador do Poço. A crônica contextualiza causos, biografias e costumes próprios da região. 

Geógrafo, cartógrafo, artista e ativista das causas da comunidade, Sérgio participou da “live” de lançamento do projeto. O vídeo é pontual e integra a exposição. “Temos uma história intrínseca com essa ponte. O Poço da Draga sem essa ponte não é Poço da Draga. Remoção, nem pensar. Somos ligados ao mar”, asseverou. 

Devoção de Luiz Santos pelo lambe-lambe resgata costumes de comunidades periféricas do Nordeste. Aqui, em ação no Poço da Draga
Legenda: Devoção de Luiz Santos pelo lambe-lambe resgata costumes de comunidades periféricas do Nordeste. Aqui, em ação no Poço da Draga
Foto: Sérgio Rocha

O recurso da imagem gera documentos únicos. Sérgio cita a paixão da moradora Ivoneide Gois (retratada com a mãe, a filha e a neta no início da reportagem) em preservar esta história. 

Guardiã

Ela guarda preciosas fotos. Um de seus álbuns propiciou o livro “Territórios da Memória: Poço da Draga”, lançado na XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, em 2019. “Vejo na fotografia umas das potências de nos legitimar. Embora tenhamos que lidar com a constante situação de ameaça e insegurança de remoção”, alerta Sérgio Rocha. 

Reunindo ensaios de Lorena Armond, Jether Junior e Roberta Bonfim, o calendário organizado pela Lugar ArtesVistas registra o espírito carinhoso destas famílias.

Obras de três artistas compõem o calendário que registra toda a vida pulsante no Poço da Drgaga
Legenda: Publicação coletiva resgata toda a vida pulsante no Poço da Draga
Foto: Jether Junior

As expressões, cores, simbolismos e cotidianos do Poço iluminam o material. A publicação é uma oportunidade para apoiar a ONG Velaumar, responsável por ações socioeducativas no local. 

Os calendários custam R$50 são adquiridos no Instagram da ArtesVistas. Adentrar a luta e existência destes vizinhos e familiares é um recado reflexivo às atuais interações sociais, diz Roberta Bonfim. “Poço da Draga é uma base da nossa relação histórica com o mar”, finaliza a realizadora. 

Compreender a realidade

Com a tese de doutorado, “Um Mar de Histórias: Memória, Identidade e Territorialidade no Poço da Draga”, a pesquisadora Marília Passos Apoliano Gomes ilumina as relações entre memória, identidade e territorialidade a partir do estudo daquela localidade. 

Até hoje, a ponte do primeiro porto de Fortaleza não foi tombada. Tratamento oposto à vizinha Ponte dos Ingleses, que atualmente sugue em reformas (o valor é superior a R$ 5 milhões) e consta na lista de bens públicos tombados desde 1989
Legenda: Até hoje, a ponte do primeiro porto de Fortaleza não foi tombada. Tratamento oposto à vizinha Ponte dos Ingleses, que atualmente sugue em reformas (o valor é superior a R$ 5 milhões) e consta na lista de bens públicos tombados desde 1989
Foto: Foto: Lorena Armond

O prisma científico adentra a voz destas cearenses. Dentre inúmeros temas, conta a batalha do Poço da Draga pelo respeito efetivo à sua condição de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). No correr das décadas, descreve a autora, muitas foram as ameaças de remoção do Poço da Draga. 

“Entendo que a importância atribuída ao passado e à memória da localidade está diretamente relacionada à iminência do risco da remoção. O território é trazido como um elemento fundante da identidade, como se os moradores estivessem dizendo literalmente que, por não se imaginarem morando em qualquer outro lugar, fora dali não seriam mais quem são”, detalha trecho da referida tese. 

O contexto social e geográfico observa a realidade fincada por trás de grandes edificações, como o da Caixa Cultural. “Em razão de estar relativamente oculta, a falta de políticas essenciais como o saneamento básico não é sequer vista pelas pessoas de fora: é necessário adentrar as suas ruas principais, os becos e as vielas para compreender a realidade local”, aponta a estudiosa no tema. 

Serviço:

Exposição Dragaleria aqui.

Calendário Lugar ArtesVistas aqui